No primeiro capítulo de seu mais recente livro, o norte-americano Thomas Ogden propõe uma diferença entre “psicanálise epistemológica” e “psicanálise ontológica” (nada de filosófico nesta distinção!).
Não se trata de um mero preciosismo. Aponta, da maneira que eu concebo, para questões importantes, por isso (também) acho essa ideia tão interessante. Antes de mais nada, o autor deixa bem claro duas coisas fundamentais. A primeira, é que essa diferenciação não é “oficial”, ou seja, não existem duas “escolas” desse tipo, são apenas modos de pensar e conceber a psicanálise, “sensibilidades”, como ele chama; Ogden está somente querendo encontrar palavras para as modificações que ele vê na psicanálise ao longo dos anos que se coadunam com as transformações que ele próprio vivenciou: mudança de enfoque das relações inconscientes de objetos internos para a luta de cada um de nós por se tornar mais pleno, assim como as experiências mais reais e vivas. O segundo ponto é que, mesmo nessa separação imaginativa, ambas continuam se intercambiando, isto é, não há uma cisão entre as duas de forma alguma, mas sim uma coexistência. É muito mais sobre tendências, como o próprio Ogden afirma, maneiras diferentes de considerar a teoria e a prática psicanalítica (com pesos diferentes em cada uma delas).
Para mim, é um tipo de transição, renovação, com a qual me identifico muito, por isso escrevo este texto psicanalítico, para servir como um tipo de base para boa parte de desenvolvimentos (bem) maiores que tenho em mente e pretendo realizar. É como se fosse um “pré”, tipo episódio piloto de séries, para começar uma jornada que será (espero!) muito longa para pensarmos o lugar acaso na psicanálise. Eu tenho este estilo “convocativo”, que muitos acham agressivo... mas a ideia é essa mesma, não de agressividade: gostaria muito que você pensasse comigo, viesse junto comigo nesta viagem.
I – DE QUE SE TRATA A PSICANÁLISE ONTOLÓGICA?
Ogden escreve que a psicanálise epistemológica (tirei as aspas agora que as devidas explicações foram dadas) remete ao início, o ensino de Freud e Melanie Klein. Esta visão tem o propósito de conhecer e entender, essencialmente sobre o inconsciente do paciente, fantasias, desejos e por aí vai; isso é feito via a interpretação da transferência, no sentido de o analista colocar em palavras seu entendimento, se ele está em um papel real ou imaginário da infância do analisando, separar o presente do passado (que estão confundidos e devem ser separados), etc. De maneira geral, é o que estudamos classicamente em qualquer “manual” de psicanálise, definição de termos, assim como em boa parte de cursos psicanalíticos (sejam das instituições psicanalíticas ou das universidades). Já “da perspectiva da psicanálise ontológica, não é o conhecimento alcançado por paciente e analista que é o ponto central; [...] mas em experenciar o processo de se tornar [o analisando – e penso que o analista também!] mais plenamente ele mesmo” (OGDEN, 2022, p. 13) [Grifo do autor].[1] Esse ponto de vista tem como principais precursores Winnicott e Bion (eu ainda colocaria Ferenczi como o primeiro, ou, ao menos, “criador honorário”). Há, neste caso, uma espera maior para o analista demonstrar (não explicar ou interpretar) seu sentimento do que está acontecendo na análise e o foco está posto no ser e no vir a ser, muito mais do que entender ou descobrir elementos escondidos (reprimidos) que estariam provocando o sofrimento, como é o caso da abordagem epistemológica. O ponto central não é o conhecimento alcançado por analista e analisando, mas a experiênciade chegar ao entendimento. Nas belas palavras de Winnicott (1969/2005, p. 148): “se podemos apenas esperar, o paciente chega ao entendimento criativamente e com imensa alegria, e eu agora aproveito esta alegria mais do que costumava aproveitar a sensação de ter sido esperto. Eu penso que eu interpreto principalmente para deixar o paciente saber os limites da minha compreensão”[2] Isso marca uma diferença, e bem grande. Estamos falando de “[...] uma experiência na qual o paciente está engajado não predominantemente na busca por autocompreensão, mas em experenciar o processo de se tornar mais completamente ele mesmo” (OGDEN, 2022, p. 13) [Grifo do autor].[3]
Reforçando: o entender e o conhecer fazem parte, podem ser importantes, mas não são centrais, ou seja, muda-se a ênfase – Ogden (2022, p. 14-15) inclusive visita momentos de Freud em que este dá mostras da psicanálise ontológica; um desses textos (FREUD, 1912/1996) é, não por acaso, dos mais vou tratar a seguir. Talvez melhor do que “ênfase” é usar a palavra ação, pois é assim que Ogden difere estas duas abordagens: a ação terapêutica epistemológica na psicanálise trata de chegar ao entendimento de pensamentos inconscientes prévios, ou seja, há um conhecimento já lá (no inconsciente reprimido) esperando para ser descoberto. A meu ver, ajusta-se perfeitamente com a ideia de Freud do psicanalista como arqueólogo, tal como ele disse para o desaventurado “Homem dos Lobos”: “o psicanalista, como o arqueólogo em suas escavações, deve descobrir, camada após camada de psique do paciente, antes de chegar aos tesouros mais profundos e mais preciosos” (GAY, 2012, p. 182) [Grifo meu]. Isto é, há algo escondido para ser descoberto, uma história já escrita. Voltarei a isso no próximo capítulo. “Por outro lado, a ação terapêutica característica da psicanálise ontológica envolve fornecer um contexto interpessoal no qual formas de vivências, estados de ser, ganhem vida na relação analítica que anteriormente eram inimagináveis pelo paciente” (OGDEN, 2022, p. 15) [Grifo meu].[4] Isso pode parecer a mesma coisa; não é.
Alguns identificados com a psicanálise epistemológica podem dar pulinhos da poltrona dizendo que isso ocorre em seus tratamentos também, etc. Bom, além do já destacado ponto que uma coisa não elimina a outra, estou falando sobre um tipo de postura, que é interna também, não apenas de como se trabalha, mas no que se acredita em que consiste este trabalho. Nos vários exemplos que Ogden (2022, p. 27) apresenta (seus livros são sempre abundantes de exemplos clínicos seus), ele diz que, assim como um analisando novo deve se perguntar “quem é esta pessoa que eu espero que vá me ajudar?”, ele se questiona: “quem é esta pessoa que está vindo a mim pedindo ajuda?”. Eu vejo isso bem diferente do que pensar, frente a um possível novo analisando, “qual o problema dessa pessoa?” ou algo similar. Abordar dessa maneira, além de ser uma visão reducionista, pois a crença é que tal problema é o centro da questão e ficará tudo bem ao ser resolvido, também, e isso é o mais importante aqui, fala sobre a fonte (pois há uma) desse distúrbio estar sempre localizado no passado. Podem dar os pulinhos e ter os chiliques que quiserem: há diferença na prática sim. E eu não falo de um lugar teórico ou de achismos.
A visão epistemológica da psicanálise é a visão clássica; ao usar esta palavra, “clássica”, há dois sentidos possíveis: que é a origem ainda importante, e que está ultrapassada. Ambos estão corretos e, por estranho que possa parecer, não são autoexcludentes. Explicações sobre o que acabei de escrever se fazem necessárias.
Os “Artigos sobre técnica”, que Freud publicou entre 1911 e 1915, talvez seja o apanhado mais rico para este debate; pode-se escolher outros textos, a minha opção foi esta. Freud escreveu bastante sobre a técnica antes destes textos (incluindo seus casos clínicos), mas este tipo de escrito foi escasseando com o tempo por vários motivos (o que é uma pena!). Em “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”, texto que vou mais utilizar (é, como sempre, extremamente rico), Freud escreve que o psicanalista (que ele ainda chamava de “médico”, o que muda completamente nos textos do fim de sua obra)[5] “[...] deve ser opaco aos seus pacientes e, como um espelho, não mostrar-lhes nada, exceto o que lhe é mostrado” (FREUD, 1912/1996, p. 131). Isso pode levar a vários comportamentos/interpretações. Eu ouvi uma história, durante a minha formação, de um psicanalista (acho que era alguém “conhecido” de sua época, mas sabemos como é a memória...) que atendia sempre com o mesmo terno a fim de não influenciar seus pacientes (espero que ele pelo menos tivesse alguns iguais, para poder os lavar de vez em quando!). A ideia é: não ter absolutamente nenhuma expressão para não sugestionar o analisando. Claro que isso é um exagero absurdo, até por ser impossível, mas a ideia de não ficar fornecendo “gatilhos” ou caminhos para o analisando trilhar continua válida: a associação livre não perdeu o seu valor de forma alguma. Essa imagem do analista frio e distante (que julgaríamos, com razão, como desatualizada), que é a caricatura que vemos em filmes muitas vezes, está bem longe do que Freud recomendou (e do que ele era, pelo que podemos ver por muitos materiais), ou seja, nunca era para ter existido, é um entendimento errôneo. Neste trecho que citei acima, Freud estava falando contra o terapeuta iniciante, ávido por resultados, colocar sua própria individualidade no tratamento, no sentido de fazer confidências pessoais pensando que isso pode ajudar o paciente, o que acarretaria um cenário de sugestão, o que, ele deixa claro, não corresponde a um tratamento psicanalítico.
Não vou me estender em analisar este artigo, não é o objetivo aqui, mas ele está cheio de elementos que mostram uma atitude mais plástica do analista, assim como regras que são valiosas (este segundo ponto é, talvez, mais complicado). A começar pelo próprio título: Freud não está ditando normas rígidas, mas dando recomendações, conselhos, dicas, orientações (Ratschläge), deixando claro que o estilo de cada terapeuta não pode ser desvinculado de quem se “é como analista”, assim como da maneira de condução do tratamento; até faz parte (e essencial!). Inclusive, autores que trouxeram inovações técnicas, como Ferenczi ou Lacan (para citar só esses dois), fizeram com base em seus próprios estilos de acordo com necessidades que viam em suas clínicas. Tudo pode levar a entendimentos tortos: pode-se fazer absurdos com a justificativa “esse é o meu jeito”. Mas a psicanálise é assim, uma tentativa de controle nesse sentido talvez fosse o seu fim.
Há de se ler e entender o contexto. Eu sempre achei mau-caratismo ou falta de conhecimento/estudo “acusar” Freud (ou Melanie Klein para o que valha) de distorções de suas indicações que ocorreram posteriormente. Inclusive, o “pós-Freud” é um estudo muito abrangente e difícil (tanto quanto importante), mas tem a ver com a ideia da psicanálise ontológica que abordarei mais logo em seguida. Para além das questões de estarmos falando de indicações clínicas escritas há mais de cem anos e na Europa, ou seja, a psicoterapia estava sendo literalmente inventada, estamos em uma época, profícua certamente, mas ainda muito inicial do desenvolvimento da psicanálise. Neste período dos artigos de Freud (1911-1914), as regras do tratamento estavam sendo ainda criadas, contornos mais firmes só viriam depois (e com todas as óbvias modificações, como acontecem até hoje). Por exemplo: a contratransferência (que não é uma expressão boa para o fenômeno) não abordada por Freud; nas raríssimas vezes em que é citada (FREUD, 1915/1996, p. 178, n. 1), é como falha e entrave que devem ser superados. A importância dos sentimentos do analista como ferramenta indispensável para o tratamento somente começou a ser desenvolvida no início da década de 1950, devido a dois artigos escritos quase que concomitantemente, mas sem nenhuma relação entre si (o que é um acaso!), por Racker, em Buenos Aires, e Paula Heimann, em Londres (com menção honrosa, claro, para, antes disso, Balint e, sobretudo, Ferenczi). Ou seja, evoluímos, não continuamos com o pensamento de Freud sobre isso, não é? Nós aprendemos que a abstinência (que é diferente de neutralidade, pois neutro nunca ninguém é) é sim primordial no tratamento, mas que isso não significa distanciamento afetivo do analisando, o que inviabilizaria completamente a análise.
A questão é que Freud (1912/1996) está tentando equilibrar as coisas: por um lado, ele quer sim estabelecer certas regras, limites para o que era a prática psicanalítica, visto ela já estar se expandindo, e já estarem ocorrendo as primeiras dissidências; por outro lado, como já afirmei, ele destacava a indispensável liberdade da maneira do analista trabalhar (dentro do campo proposto). Ele não estava simplesmente cagando regras. Tudo o se deu posteriormente, após a sua morte, é a prova do quanto difícil é o equilíbrio entre se manter nas normas do jogo e alimentar a criatividade e pessoalidade.
Outro exemplo. Freud (1914/1996, p. 169) [Grifo meu] escreve que:
“protege-se melhor o paciente de prejuízos ocasionados pela execução de um de seus impulsos, fazendo-o prometer não tomar quaisquer decisões importantes que lhe afetem a vida durante o tempo de tratamento - por exemplo, não escolher qualquer profissão ou objeto amoroso definitivo - mas adiar todos os planos desse tipo para depois de seu reestabelecimento”.
Isso é correto! Não só vai no sentido de a pessoa não tomar decisões no auge de alguma emoção, justamente pelas coisas que o tratamento está mexendo (que podem ser desastrosas), como é inegável que se estará mais apto a tomar melhores decisões após uma análise. Bom, em primeiro lugar, Freud está fazendo esse comentário dentro de toda uma discussão sobre a compulsão à repetição, noção tão importante que ele está abordando pela primeira vez nesse texto. Os “impulsos” do paciente que destaquei na citação está falando disso, da compulsão à repetição (que ainda não tem aqui o caráter instintivo – e explosivo! – que ganharia seis anos depois). Agora, é evidente que tal procedimento não é mais possível atualmente! Os tratamentos de Freud duravam seis meses, ele atendia pessoas em uma frequência, inimaginável hoje, de seis vezes por semana, (quase) qualquer um pode adiar alguma grande mudança por esse período de tempo; atualmente, as análises duram anos, às vezes, mais de vinte (o que é incrível)! Ou seja, se a pessoa for esperar ter alta para mudar algo em sua vida, sua vida já terá passado. O objetivo de um tratamento psicanalítico se perde completamente, afinal, trata-se para se viver (melhor), não se vive para se tratar (Winnicott disse isso). Então, obviamente temos de nos adaptar.[6]
Não é o caso de “defender Freud”; ele nem precisa de defesa (muito menos da minha). Este artigo mesmo que escrevo é uma grande crítica ao modelo freudiano. Só que nós temos de colocar as coisas nos seus devidos lugares. Freud (1912/1996) fala, além do que já destaquei, por exemplo, da importância do treinamento, ou seja, de o terapeuta se tratar. Ora, isso é absolutamente essencial (o mais essencial)! Você aceitaria de bom grado se submeter a uma cirurgia com um cirurgião que nunca colocou os pés em um bloco cirúrgico? É a mesma coisa com um “analista” (as aspas são porque, indiscutivelmente, não é) que nunca se analisou, isso é uma obscenidade, uma afronta, uma, na melhor das hipóteses, piada de mau gosto. Agora, como se forma um analista, as mudanças que ocorreram neste campo em mais de cem anos, tudo isso é uma discussão importante; porém, em nada desqualifica a recomendação de Freud.
Há algo que eu acho que foi se perdendo, talvez não tanto com Freud, mas muito com os que vieram depois. Algo que Ferenczi, grande inovador, ridicularizado, de certa forma, por um bom tempo, já tocava o dedo na ferida em 1929. 1929! Só eu que fico impressionado com isso? “Todos sabem que nós, analistas, não temos o hábito de atribuir muito valor científico aos resultados terapêuticos, no sentido de um maior bem-estar do paciente” (FERENCZI, 1992, p. 62). Ora, os pacientes de Freud, se pegarmos os casos que foram publicados, não foram curados em sua maior parte (e não estou falando de “cura” no sentido médico!), mas há justificativa para isso: estava-se criando uma forma de tratamento, logo, era normal uma grande atenção voltada para o método, ainda que se tal método não trouxesse cura, não deveria ser validado. E depois? Ferenczi, logo acima, já está em um momento em que esta atenção para a “arte da psicanálise” (expressão que me desagrada profundamente) já deveria ter passado. E o desenvolvimento da psicanálise depois que Freud morreu? Quanto se teve de atenção para o alerta que Ferenczi fez? Claro que evoluímos na prática psicoterapêutica (eu mesmo não estaria aqui se não fosse isso), a própria contratrasferência que citei anteriormente é prova disso, mesmo que ainda se tenha grande resistência em se falar do analista, nós só queremos falar de casos de “sucesso” (seja lá o que isso signifique). Justamente, ainda no questionamento do enfant terrible[7] da psicanálise: nós não nos preocupamos, de fato, com o valor científico dos resultados terapêuticos, do bem-estar do paciente? Porque se nós damos mais atenção para a tal da “arte” da psicanálise, para os “grandes” e “marcantes” movimentos (interpretações) que fazemos, sem estarmos preocupados com que fim isso levou, nossa “arte” (ou seja lá qual esdrúxula palavra queiram colocar) não vale absolutamente nada! Como no (ótimo!) filme de Elisabeth Kapnist, escrito pela própria e por Elisabeth Roudinesco, produzido por Françoise Castro, “Sigmund Freud: a invenção da psicanálise”, no qual é dito que o “Homem do Lobos” não se curou, mas foi transformado pela experiência psicanalítica, como sendo uma coisa boa. Ora, além do transformado por ter virado quase que um objeto de fetiche, o que isso quer dizer?
Será que não houve, dessa “turma” da psicanálise epistemológica, um interesse muito maior em criar gigantescas elucubrações metafísicas que em nada contribuem para o objetivo central da psicanálise: o atendimento clínico? Quer dizer, quando até hoje se discute certo conceito teórico que nunca recebeu uma explicação de fato e não há maneira de haver uma explanação minimamente satisfatória de como ele funciona na clínica, qual o seu valor? Ao contrário do que muita gente parece achar, psicanálise não é filosofia!
Bem no fim do seu livro que é para ser sobre o acaso (mas não é, pois é sobre a teoria do caos, mas isso é para depois), David Ruelle cita a psicanálise com admiração. Ele faz um comentário que acho relevante. Sendo favorável à teoria do instinto sexual, lamenta que esta não está apoiada em estudos anatômicos, o que seria praticamente uma agressão aos ouvidos de muitos psicanalistas com a ideologia purista da psicanálise. Só que ele vai mais longe, dizendo que o quadro é ainda pior para os outros problemas que a psicanálise coloca.
“De fato, a glória e a tragédia da psicanálise residem em seu isolamento metodológico, e foi ele que lhe valeu o desprezo de tantos cientistas. O próprio Freud era um cientista e constituiu a psicanálise como uma doutrina científica. Sob seus sucessores, infelizmente, a psicanálise se distanciou da ciência. Só nos resta esperar que uma renovação metodológica reverta essa tendência. Afinal, a psicanálise trata de problemas de software que, mais dia menos dia, deverão unir-se proveitosamente aos problemas de hardware de que tratam as neurociências” (RUELLE, 1993, p. 214) [Grifo meu].
Eu diria para o físico belga esperar sentado esse dia chegar (se eu estivesse onde estou agora vinte anos atrás, provavelmente iria por esse caminho, ainda que não fosse fazer diferença...). Como muitas coisas interessantes que são escritas, ele não explica o que quis dizer com “Freud ser um cientista”, a “psicanálise ser uma doutrina científica”, ou “os sucessores terem se afastado da ciência”. Mas podemos ter ideias, afinal, ele mesmo diz que “a ciência é totalmente amoral e completamente irresponsável” (p. 222), e nesse ponto, eu devo estar bem.
Parece-me até um pouco óbvio, a partir do momento que conhecemos o que veio depois de Freud, que Ruelle esteja se referindo ao que questionei logo acima, de uma preferência por uma (grande) parte de nós de edificações metafísicas (psicológicas que sejam), “filosofações” que se afastam, num mau sentido, do que é a psicanálise. Eu nem estou, ainda, interrogando o valor da metapsicologia, mas pensando sobre como a tomamos. Fulgencio (2013, 494-495), em interessantíssimo artigo, coloca, baseado em descrições que foram efetivamente feitas por Freud, sentidos pelos quais se pode entender a metapsicologia: um, no qual podemos ter referentes na realidade fenomênica, e outro, em que jamaistais referentes podem ser encontrados. Dou destaque para exposições concretamente feitas por Freud que o autor sublinha, de a metapsicologia se tratar de conceitos auxiliares, especulativos, sendo uma superestrutura teórica substituível. Ficções teóricas. Ele também aponta para os desenrolares que esta questão teve após Freud, e as modificações, de peso também, mesmo que ele não as descreva.
Em outro artigo, que se completa com o anterior, Fulgencio (2003) corrobora, em sua maior parte, o que penso da visão científica que Freud tinha, e comenta sobre a separação entre os discursos metapsicológico e clínico, mas tendo o primeiro, como já vimos, ainda que necessário, como um auxílio, um incremento da clínica psicanalítica. E acessório este altamente mutável dependendo das necessidades, como Freud mesmo sempre destacou: as mudanças da teoria sempre foram feitas premidas por necessidades da prática. Assim, o questionamento que Fulgencio faz (em ambos os artigos que cito) é: é indispensável uma metapsicologia? Eu acrescentaria: em que grau e como ela é necessária, útil (entendendo que a utilidade é a prática psicoterapêutica)?
Deixemos algo bem claro: não se trata de uma desvalorização da metapsicologia, mas de um questionamento para a colocar no seu devido lugar. Para muitos, dependendo da formação que tiveram, assim como eu, certamente é um grande abalo a um grande baluarte psicanalítico. A minha vida inteira, havia coisas que ouvia de instrutores, lia em comentadores famosos, mas não via tão claramente como diziam sob a letra de Freud. Era algo que estava posto. Sempre me trouxe dúvidas, mas, por vários motivos, eu fechava os olhos para isso. Há toda uma corrente de pensamento, altamente influente, que coloca a metapsicologia como o “ouro” da psicanálise, preocupa-se mais, na maioria das vezes, em associações metafísicas com a filosofia ou outra disciplina que afaste a psicanálise das ciências físicas, químicas ou biológicas (o que é bem o contrário do que Freud pregava)[8] quase negligenciando a atenção psicoterápica, que é, esta sim, o motivo de ser da psicanálise. (Só para dar nome aos bois, pois terá de ser tratado separadamente, eu estou falando da tradição francesa, de dois marcos: o ensino de Lacan e o “Vocabulário de Psicanálise” de Laplanche e Pontalis). Por que eu sempre me interessei mais pela metapsicologia? Foi para me sentir esperto (e pertencente a certo grupo) por dominar termos que outros não dominam? Será que não exageramos por vezes na eloquência do discurso teórico a ponto de o tornar vazio? E por vazio estou querendo dizer de ser uma mera ruminação filosófica sem utilidade prática alguma que se afasta tremendamente da psicanálise como a concebo.
Em uma carta para Anna Freud (em 18/03/1954, ou seja, já completamente no pandemônio que a morte de Freud permitiu), Winnicott comenta que ele fala as coisas do seu jeito, ao invés de aprender a usar as expressões da metapsicologia psicanalítica. Então, questiona os motivos de suspeitar tanto desses termos: “será que é por que eles podem dar a aparência de um entendimento comum quando tal entendimento não existe?” (WINNICOTT, 1987, p. 58).[9] Winnicott é exemplar nessa discussão, Fulgencio (2013) o coloca como o que ficou indiferente à metapsicologia pós-Freud (o que não é tão simples assim, e ele mesmo desenvolve em seu artigo). Por isso e pelo seu caráter inovador, o mesmo Fulgencio (2003) aponta a leitura da produção de Winnicott, amparada pela pesquisa de Zeljko Loparic, como uma teoria próxima da experiência imediata, longe da teorização abstrata como a metapsicologia, longe de qualquer jargão psicanalítico, como um bom pesquisador da natureza. Dessa forma, Winnicott teria reformulado o paradigma da psicanálise, construindo uma teoria direcionada mais ao crescimento pessoal, mais ampla do que uma teoria da sexualidade. É a ideia de que Winnicott troca a imagem do bebê na cama da mãe/dos pais (Édipo), para a do bebê no colo da mãe, teoria do amadurecimento pessoal no qual a sexualidade é apenas uma parte (LOPARIC, 2008).
Claro, ninguém (nem eu, nem os autores citados) está afirmando, como já destaquei, o abandono da metapsicologia; são ideias (importantes) para se pensar, e eu penso muito nelas. Porém, mesmo com o não abandono da metapsicologia, esta é necessariamente modificada, não apenas em seu peso, mas também em sua forma. Por exemplo, seguindo na ideia do fim do parágrafo anterior, a própria noção de Freud de o tratamento girar em torno do complexo de Édipo com uma busca no passado por tesouros escondidos que resolveriam o problema, não é incorreta, são muitas as situações em que é acertado e apropriado sim; porém, eu não penso que isso deva ser a totalidade do tratamento, nem mesmo seu guia principal, mas uma possibilidade a mais: há muitos casos em que não se resolve absolutamente nada indo por este caminho. Nesse sentido, podemos dizer que Freud estava errado: o tratamento não se resume a isso (bem longe disso, na verdade) e este não tem de ser o grande foco principal. Há tratamentos que são infrutíferos por se ficar insistentemente absorvido pelo Édipo (sim, eu sei que existem várias razões para um tratamento não funcionar, estou denunciando uma delas; argumentar contra isso com essas “outras razões” é não ter argumentos, é simples resistência, mesmo disfarçada de “queridice”). Outro exemplo, que é essencial para mim, é o que Fulgencio (2103) sublinha de que, para Winnicott, para além do inconsciente reprimido freudiano, haveria de se pensar outro tipo de inconsciente, não redutível a este. Mas vamos com calma: eu estou apenas apontando caminhos.
Ainda que eu discorde de muitas construções de autores inseridos neste caminho que estou interessado (como a própria troca de paradigma proposta por Loparic, com base na teoria de Thomas Kuhn e se apoiando em Heidegger), eu vejo que há uma direção de se colocar a psicanálise “de volta” no rumo do qual ela nunca deveria ter saído. Que rumo é este? É o da preocupação primordial com a clínica: tudo mais, que importante seja, é auxiliar, são usos que a psicanálise faz e/ou pode oferecer para outros estudos de outras áreas. É um “de volta” que é muito mais ir. Não é reacionário (bem pelo contrário!), é ir adiante promovendo inovações (que a psicanálise tem grandes dificuldades), recuperando preocupações iniciais (como Freud com suas histéricas), mas, obviamente, de forma diferente.
Eu acho muito significativa a maneira que Ogden (2022) começa a expor o que ele entende por psicanálise ontológica. É a pergunta que Winnicott fazia para cada paciente que atendia na unidade de adolescentes do Hospital Paddington Green, que basicamente se mistura com o que o autor entende pela ontologia: “o que você quer ser quando crescer?”. Com esta pergunta, Winnicott não estava querendo saber, por exemplo, que profissão aqueles adolescentes estavam pensando em seguir, que julgo ser o que pensamos na maioria das vezes (nós, “pessoas grandes”, de acordo com o Principezinho). Nas palavras de Ogden (2022, p. 1) [Grifo do autor], este questionamento engloba “[...] os aspectos mais fundamentais de alguém ser e vir a ser: ‘Quem (que tipo de pessoa) você quer ser agora, neste momento, e que tipo de pessoa vocês aspira se tornar?’”.[10] Isso é muito a teoria de Winnicott sobre o amadurecimento, também sobre o que Ogden propõe da psicanálise ontológica.
Da maneira como eu compreendo, a visão clássica (epistemológica) acredita haver, como destaco insistentemente, um “tesouro escondido”, algo a ser descoberto, ou seja, as causas inconscientes reprimidas responsáveis pelo sofrimento, e é nisso que o empenho do analista se foca. Sob o prisma ontológico, a ênfase é na criação, na invenção do que a pessoa, dizendo de forma geral, poderia ter sido, desta forma, muito mais apontada para o futuro (na verdade, talvez seja ainda mais para o futuro do pretérito). Não que o passado não tenha importância; é claro que tem, pois “encenamos” na análise o ambiente (que faltou talvez) do paciente, mas exatamente esta encenação é no presente, não é reprodução de uma cena, mas criação de uma nova, o que quer dizer que não estamos falando sobre o passado. A “resposta” não está no passado, pois não uma “solução divina” previamente existente a ser encontrada; nada se conserta no passado, apenas no presente (e futuro, já que concebo todos interligados e acontecendo ao mesmo tempo). A relevância não é mais do que aconteceu com a pessoa, mas no que poderia ter acontecido e no que pode vir a acontecer.
Mas então a psicanálise epistemológica não trata do futuro? A análise disso tudo tem de ser mais profunda, mas vamos ver alguns pontos.
A pergunta que talvez fique é: o objetivo da análise (mesmo as de Freud) não é que a pessoa possa viver melhor? Sendo assim, isso não aponta para o futuro? Sim, mas há “poréns” aí. Como já sublinhei no início deste artigo, uma abordagem não elimina a outra, ambas coexistem (e talvez deva ser assim), contudo, há uma mudança de ênfase.
Eu acredito que qualquer um que já se embrenhou, de alguma forma, a ser psicoterapeuta já ouviu de seu paciente: “e agora? O que eu faço com isso?”. A pergunta vem, comumente, após alguma descoberta, geralmente por alguma interpretação do analista, sobre o que a pessoa é, claro, mas sobretudo sobre o que ela foi, sobre o que lhe aconteceu. Ou seja, é sobre o passado. O interesse no conhecer e entender, sobre o que já aconteceu, é sobre as causas para o que está ocorrendo agora. Ok, presente (obviamente) e futuro estão inseridos no processo, só que de forma extremamente periférica. Claro que o analista não vai responder à esta pergunta (afinal, psicanalista não dá respostas – e não porque seja “mau”, mas porque simplesmente não as têm!), mas a impressão que tenho, muitas vezes, é que presente e futuro ficam como se fossem algo que se resolveriam por si só, ao natural: ao se tomar consciência de tais causas, a resolução do conflito é uma consequência. Ora, não é assim, talvez justamente por isso que tantos pacientes de Freud não melhoravam, visto que esta era sua premissa. “Dar-se conta”, entender algum motivo do passado para os sofrimentos de hoje, não vale de nada! É um entendimento puramente lógico, racional, que não faz o menor sentido se não houver uma conexão afetiva, emocional verdadeira (vide o caso clínico – estupendamente bem escrito – do coitado do “Homem dos Lobos” (FREUD, 1918/1996), que continuou pela vida inteira tão louco quanto quando começou a análise). O conhecimento por si só não tem valor algum. Eu já vi (literalmente, de experiência própria) analista conceituado e reconhecidamente ótimo pedir para seu analisando contar sobre seus pais (o histórico, claro), pois este estava falando de outras coisas. “Ah, mas a relação com nossos pais é importante de saber, principalmente no início do tratamento”. Claro que sim, tanto quanto as nossas relações sociais, amorosas (adultas), de trabalho, etc. Por quê a interpelação não ocorre dessa maneira nesses tópicos também? É porque o complexo de Édipo é o centro de tudo (não só das neuroses, como Freud dizia) e, repito, fala do passado. Se a associação é realmente livre, deve-se focar nos pais? “Ah, mas não são todos os analistas que pensam/trabalham assim”. É claro que não, mas isso é um lixo de argumento. Porque não são todos assim, elimina que muitos são? Quer dizer que não há, de verdade, nenhuma tendência nesse sentido? Isso sim que é resistência! Deixe-me ser o mais claro e direto que eu consigo ser: eu entendo (já falei disso) que os casos de Freud estão inseridos em um contexto de criação de um tipo de tratamento, mas essa história de que a psicanálise e o tratamento psicanalítico são uma “arte” é uma porcaria. É como se fosse assim: “agora, depois da análise, eu sei o porquê sou louco”. Isso basta? A pessoa era maluca antes (estou usando “louco/maluco” no sentido leigo e geral, de “problemas”), continua maluca, mas agora sabe o motivo. Todo o dinheiro gasto por todo o tempo despendido é para isso? É grande acréscimo saber sobre seus problemas, mas a vida continuar a mesma mixaria? Se for assim mesmo, aí teremos de concordar com os críticos estúpidos da psicanálise de que ela realmente não funciona. E eu acho que não funciona mesmo em muitos casos: bom analista, bom paciente, ambos empenhados; têm algumas coisas faltando, não? Eu ainda acredito muito na psicanálise, por isso eu falo contra o que acho equivocado, e forço no caminho que confio.
“Juliano, estás esquecendo que não é só isso, que Freud pautava o tratamento na transferência, que é (ou deveria ser!) a relação afetiva com o analisando, etc.”. Não estou esquecendo não, mas a própria relação transferencial também estava muito mais em nome da descoberta, do conhecimento do passado, tendo como se apenas isso fosse curar (no sentido psicanalítico) a pessoa. O que pode curar é a vivência com o analista (da forma como Winnicott propõe, e Ogden desenvolve), a qual podemos chamar de transferência tranquilamente, mas não como ponto de exploração do passado (ou mesmo do presente, desse jeito que estou colocando). Descobrir o motivo de algo não resolve nada se o trabalho for só isso; além do mais, não há, realmente, um motivo para tudo. A vida, em si, não tem sentido algum, nós que temos de criar significações para ela constantemente. A não ser, claro, que se acredite nas escrituras.
Eu não estou, como já afirmei, tirando a importância do passado, mas estou sim questionando a importância deste passado, um passado entendido de forma linear temporalmente. Se concordamos que o tempo não funciona de forma linear (sinceramente, seria um absurdo se não concordássemos), de nada adianta ficar procurando causas reprimidas para os problemas de hoje, porque elas simplesmente não existem em muitos dos casos. A verdade não deve ser desvelada (pois não está lá a espera disso), mas inventada. Passamos, assim, do acento do desvelamento para o da criação. Não existem lacunas para serem preenchidas, o que há são futuros a serem feitos, atualizados, criados.
A abordagem ontológica é não só o melhor, mas o único caminho para tratar do (possível) acaso na psicanálise, tema de meu interesse. Para isso, há uma expansão necessária para vários braços, mas temos de enfrentar, este é o objetivo aqui como já anunciei.
II – O ACASO
Voltemos ao questionamento de Winnicott: “o que você quer ser quando crescer?”. Ogden (2022) salienta que a palavra “querer” é limitada pelas circunstâncias em que se nasce, ou seja, não exatamente aquilo que se aspira a ser, mas que “[...] dessa perspectiva, o acaso, em todas as suas formas, desempenha um papel poderoso em determinar os limites de que tipo de pessoa que poderíamos imaginar” (OGDEN, 2022, p. 2) [Grifo meu].[11] Eu concebo que é este acaso que deve ter lugar no consultório psicanalítico, a fim de fornecer oportunidades do que poderia ter sido (mais do que o quedeveria ter sido), pois, como Ogden afirma, não ter vivido partes do desenvolvimento distorce ou impede possibilidades de crescimento posterior, de se sentir (ou não) vivo de fato. É a sensação de ter sido enterrado vivo, de aquilo que se poderia ser ter morrido, uma “[...] experiência de não crescer, não mudar, não vir a ser, é um estado de ser no qual é impossível sonhar [...]” (OGDEN, 2022, p. 7).[12] Se acasos nos impedem, neste caso, de sermos quem poderíamos, ou, talvez mais ainda, de nos sentirmos reais verdadeiramente, somente acasos podem ajudar a resolver este obstáculo.
Há também um elemento temporal importante. Sobre o “quando” da pergunta de Winnicott destacada acima, Ogden (2022, p. 6) [Grifo do autor] diz: “nós todos vivemos nessa lasca de tempo entre então, referindo-se ao passado, e então, referindo-se ao futuro, e nós temos de sentir o momento quando a hora é certa para nós crescermos de maneiras particulares”.[13] Isso é muito importante, pois, além de já tirar um pouco o peso maior no passado, aponta para a uma ideia que mencionei no capítulo anterior. É a experiência mental do “gato de Schrödinger”, proposta para questionar as descobertas da mecânica quântica (por aquele que foi um dos “fundadores”!). Resumidamente, a experiência do físico austríaco Erwin Schrödinger propõe um gato fechado em uma caixa opaca, ou seja, impossível de se observar. Dentro dela, além do gato, há um átomo radioativo, um frasco de vidro com veneno e um contador Geiger (que mede níveis de radiação) que aciona um martelo acima do frasco. Se este átomo, muito instável, decair, o contador ativa o martelo, que quebra o frasco, liberando o veneno e matando o gato; se o átomo não decair, o que é entregue ao acaso, o bichano vive. Como não vemos dentro da caixa, somente quando a abrimos é que o gato “colapsa” em seu estado de superposição: aí temos o gato vivo, se o veneno não foi liberado, ou morto, se foi. A “moral da história” é: antes de abrirmos a caixa, o gato está em um estado de superposição: não está vivo ou morto, nem está combalido, um meio termo; ele está vivo e morto, um gato perfeitamente saudável e absolutamente falecido, ao mesmo tempo.
Isso remete ao que aludi no início do capítulo anterior: não há uma história já escrita que tenha de ser descoberta, ou seja, não é linear; a história vai sendo constantemente criada, não é estática, mas móvel o tempo todo. Por isso que uma abordagem, verdadeira, do acaso leva a passarmos de uma psicoterapia do desvelamento da verdade, para uma da criação de verdades. No tratamento analítico, não reencontramos nossa própria história, mas sim a inventamosconstantemente. Isso afeta vários pontos no trabalho clínico, por exemplo: o analista não fornecerá grandes entendimentos e/ou descobertas sobre a vida do paciente (isso, da forma que for, sempre deveria ser considerado um contrassenso), mas tomará uma atitude mais próxima ao que Winnicott (1963/2018, p. 386) [Grifo do autor] asseverou sobre o motivo pelo qual ele interpretava: “eu sempre senti que uma importante função da interpretação é o estabelecimento dos limites do entendimento do analista”.[14] Há, aqui, uma dupla questão.
A primeira, é a importância crucial do ambiente, tal qual Winnicott postulou, no amadurecimento (em contraste com peso no mundo intrapsíquico). Em outro texto da mesma época, também falando sobre os motivos de ele interpretar, diz: “se eu não faço nenhuma [interpretação], o paciente tem a impressão de que eu entendo tudo. Em outras palavras, eu retenho alguma qualidade externa por não estar totalmente certo – ou até por estar errado” (WINNICOTT, 1962/2018, p. 340-341) [Grifo meu].[15] Ou seja, não é o “mito da interpretação perfeita”, aquela que vai revelar os segredos escondidos. Assim, temos muito mais a presença da realidade. Neste mesmo texto, logo no início, Winnicott diz do objetivo que sempre tem de levar uma análise ao seu fim (o que podemos entender, “curar” seu paciente), e afirma: “análise pela análise não tem significado para mim” (p. 339).[16] Isso me faz pensar em uma mudança de foco, no sentido de não encarar a análise como um tipo de “arte do autoconhecimento”, mas de a ver primordialmente como um tratamento para que a pessoa possa viver melhor de fato. Não que não se faça isso, mas às vezes parece haver uma falta de preocupação com os resultados (como já vimos Ferenczi apontar há quase cem anos), e mais interesse no desenvolvimento da técnica (e para que ela serviria então?). Eu vejo nessas postulações de Winnicott algo mais voltado para a vida real, não um tipo de “fantasia” que parece existir por vezes no mundo psicanalítico (e que o torna um mundo à parte). Escrevi uma crônica abordando um pouco este assunto (CORRÊA, 2023).
A segunda questão, que já vínhamos falando, é a temporal. Se passamos do desvelamento da verdade para a criação de verdades, toda a temática do tempo tem de ser examinada. Não há mais o passado estático, ou mesmo que esteja em movimento, oferecendo-se para ser descoberto; não, o passado está sendo criado aqui e agora (como na experiência do gato de Schrödinger). E vamos além: se o passado é gerado agora, o futuro também é, não? Talvez aqui tenha uma mudança de eixo também, pois não é o passado o problema, as pessoas não estão querendo resolver seus passados (até por ser impossível, já passou), mas seus futuros! Busca-se análise com esperança (do tipo que for), e esperança tem sempre a ver com o futuro. “Não ter futuro: essa sim é a grande tragédia da vida”. Claro que o passado continua tendo valor, mas não é mais ele que dita as direções do tratamento: os outros tempos estão todos envolvidos e acontecendo tanto quanto.
O acaso tem (ou pode ter) lugar no pensamento da psicanálise ontológica; mais ainda, ele pode ser um elemento constituinte para um incremento em aspectos mais “travados” da análise. Eu já disse algumas vezes que é mais “fácil” tratar do acaso na clínica (do que na metapsicologia); porém, não é exatamente esta a questão. Não se trata de ser “fácil”; é mais de ser possível e, quem sabe, útil. É pela perspectiva muito mais focada na clínica, com a metapsicologia, que continue existindo, sendo auxiliar, nunca o discurso principal, mas é também por outros temas que são trazidos de maneira bem mais eficiente, como o temporal que citei acima. “Todas” as “tentativas” (e estas duas palavras tem de ser colocadas entre aspas, pois nunca houve uma tentativa de fato – e as tentativas disfarçadas e/ou periféricas são em pequeníssimo número) feitas para falar do acaso sempre foram baseadas na metapsicologia, com algum vislumbre, quando muito, para a clínica, e nunca sendo um tema central em grau nenhum. Além disso, eram fortemente baseadas na filosofia, como se a psicanálise tivesse de ter um aporte filosófico, o que é um completo absurdo. Não é de impressionar que tenham sido um retumbante fracasso. Até porque nenhuma delas é uma abordagem sobre o acaso verdadeiramente, apenas mantem, de forma mais disfarçada, o desprezo pelo acaso que existe desde o início da filosofia (aqueles lá, ao menos, eram sinceros e diretos!), ao afirmarem a já existência do acaso na psicanálise (o que é um disparate), mas ele continuando sem lugar!
Na esteira disso, a melhor parceira para se estudar o acaso na psicanálise é a mecânica quântica. Dou quatro razões claras e objetivas para isso: a filosofia sempre foi (e nunca mudou este posicionamento) absolutamente contra o acaso: é algo irracional; ainda que Freud provavelmente fosse contra a mecânica quântica (como Einstein foi), em razão de sua natureza contraintuitiva, pois ele era conservador em certos aspectos científicos, o modelo freudiano sempre foi o da física, da química (é só olharmos, por exemplo, o aparelho psíquico de “A interpretação de sonhos”: é o protótipo do arco reflexo), nunca foi a filosofia; a mecânica quântica, ainda que determinística, é a única teoria que, de fato, não só aceita como tem o acaso como elemento constituinte e importante; por último, a mecânica quântica é a teoria mais bem-sucedida da história da ciência. É claro que não se pode fazer uma simples transposição (em nenhum caso se pode!), mas podemos nos inspirar naquilo que funciona. Não parece óbvio este caminho, ao invés de outros, que já deram provas de não levar a lugar algum, pois não modificam em absolutamente nada nossa prática clínica?
Não, nem Ogden, nem nenhum dos autores colocados por ele como precursores do pensamento ontológico na psicanálise falam de acaso (muito menos Freud); ninguém, nenhuma teoria tem o acaso elemento principal e, nem mesmo, constituinte na psicanálise. Isso não deveria precisar de justificativa, pois é um dado; porém, infelizmente, precisa, muito. Então, tenho de (começar a) argumentar um pouco aqui. O acaso é tema do meu interesse desde sempre, mas não se trata de querer o colocar à força na psicanálise, ou pensar que isso resolveria todos os problemas. Eu tenho consciência: se toda a construção nesse sentido se mostrar infrutífera, eu serei o primeiro a desistir. É que, há tempos, existem faltas que sinto na psicanálise, de tratamentos serem menos proveitosos do que poderiam ser. É nesse sentido que a abordagem ontológica é a única viável, pois, além de focar mais na clínica e na realidade, livra-nos de extrapolações como as que já citei: o acaso é algo mundano, da nossa realidade, não é metafísico (ou metapsicológico).
Há uma questão tão básica quanto importante em relação ao acaso, e talvez por isso tão difícil de se entender, que, já de início, temos de ter absoluta clareza, ou quase nada do que for falado depois fará sentido. Eu ainda a repetirei muitas vezes em outros textos (acredite, é necessário...): é a definição do que é o acaso. O físico francês Rémy Lestienne, que escreveu o melhor livro que existe sobre o acaso em todos os sentidos, coloca de uma forma que não pode ser mais clara: “por definição, os acontecimentos do acaso não têm antecedentes. Nenhuma mão, nenhuma providência exterior a ele mesmo o conduz, sem o que não seria mais acaso” (LESTIENNE, 2008, p. 270) [Grifo meu]. Eu acho triste que isso necessite de muitas explicações, mas talvez seja porque, como eu sempre afirmei, o óbvio é o mais difícil de dizer (e, por consequência, de entender também). É o que chamo do acaso em si: nós podemos usar esta expressão porque não há qualquer relação com a filosofia; uma reclamação nesse sentido é não alcançar o caminho que estou seguindo, o que é o acaso, e até mesmo as origens da psicanálise. Além disso, temos de entender o acaso como encontros ao acaso. É disso que se trata. “Acaso” tem de ser sempre entendido como encontro, pois não há um sem outro. Há, obviamente, encontros que não são ao acaso (nós marcamos de encontrar com amigos, etc.); porém, não há acaso que não seja um encontro. De todos os tipos. Não apenas de pessoas, mas também de pensamentos, gestos, expressões.
“Quando a onça está morta, todo mundo é caçador”. Esse dito (popular, eu acho) ajuda muito a entender o que é o acaso. Uma vez, uma boa e bela amiga me questionou, de forma perspicaz (como ela é), se eu achava possível vivermos uma vida sem causas, na qual tudo fosse ao acaso. É claro que não! É impossível vivermos nossa vida assim. Este nunca foi meu objetivo. O estudo do acaso só o insere, não elimina, de forma alguma, as causas: ambos podem (devem!) conviver, afinal, a realidade é assim! Um exemplo que já ouvi (idiota, mas totalmente compreensível por quem o disse): duas pessoas se encontram, digamos, no curso que estão fazendo; muitas coisas se desenvolvem a partir daí. O “argumento” é: sim, mas havia o desejo dessas pessoas fazerem o curso, etc. (Pessoas têm um problema com o tal desejo... parece algo sagrado que explica todas as coisas). A presença do acaso não elimina o desejo, como poderia? Mas o desejo dessas pessoas fazerem tal curso (ou seja o que for) não é justificativa para elas terem se encontrado. Não sei você, mas eu já estive em locais muito pequenos e não encontrei pessoas que, soube depois, estavam lá. O encontro (ao acaso) não é uma consequência necessária do tal desejo de se fazer o que quer que seja, mesmo que existam motivos para se ter chegado lá (que também é algo a ser questionado, será um caminho tão linear assim?). Este tipo de consideração contra o acaso é estúpido por simplesmente não entender o que é o acaso em si. Por isso que, para mim, é enlouquecedor ouvir indivíduos afirmando reconhecer o acaso, mas usando este tipo de “argumento” que o desqualifica completamente! Mas é compreensível: é difícil aceitar que coisas (não todas, como já expliquei acima) não tem nenhum motivo, nenhuma causa; difícil conceber que a vida em si não tem sentido algum, fora o que a gente faz (se puder). Que eventos simplesmente acontecem, sem uma necessidade ou objetivo. Por isso é tão mais confortável crer em algum destino maligno ou providência divina, como as religiões pregam: nesse sentido, o apego ao desejo como explicação para tudo não fica nem um pouco longe disso.
Eu tenho de escrever um trecho mais longo agora em itálico (em letras maiúsculas eu acho meio agressivo, ainda que este fosse o caso...) porque parece ser muito difícil de se prestar a atenção (ou pessoas têm sérios déficits cognitivos, afetivos, ou de qualquer outro tipo, mas graves), e irei repetir ainda muitas vezes (como quase tudo deste texto): após o evento ocorrer, nós podemos rastrear as causas (inventá-las muitas vezes), mas há uma diferença muito grande entre ter a ideia de que estas causas já estavam lá, do que pensar que elas surgiram justamente porque o evento já se consumou. Ou seja (pode acreditar, nunca é demais repetir nesse caso), se uma causa já existia previamente, mas só a descobrimos depois, não há acaso. O acaso, assim, é só uma desculpa para a nossa ignorância, da maneira que foi por toda a história da filosofia, direta e indiretamente. A psicanálise herdou este pensamento (o que não é nenhuma surpresa, visto como ela foi criada e se desenvolveu), mesmo que psicanalistas esperneiem, sem nenhuma razão, quando digo isso. Mesmo rastreando causas, mas acreditando que elas não estavam ali previamente, quer dizer, é realmente uma surpresa, foram criadas no momento desta busca, é diferente, e aí o acaso existe, ou pode existir como elemento constituinte, não como pretexto para a nossa ignorância ou para qualquer outra argumentação despropositada.
Por isso que é fácil ser caçador quando a onça já está morta; o problema é antes de ela morrer e sem saber ser morrerá. Houve uma terrível pandemia, da covid. “Ah, mas sabíamos que teria uma pandemia, tínhamos dados, etc.”. Ok, então porque não foi feito algo antes? Porque era imprevisível! Depois que aconteceu é fácil dizer que ia acontecer! Eu posso fazer uma previsão certeira agora: uma grande celebridade irá morrer este ano (e já morreram várias...). Claro! Todo ano morre uma grande celebridade! Quem vai morrer? Quando? Como? Estou exagerando, mas é isso mesmo: se a causa já está lá, tem de ser possível prever; se não prevermos, é pela nossa impotência de fazer, não tem lugar algum para o acaso. Se pensarmos assim, o acaso em si não tem serve para absolutamente nada, não tem lugar, senão mascarar o que não sabemos. Não há problema pensar assim, só temos de ser muito claros a este respeito.
III - HORIZONTES
Para tentarmos falar, verdadeiramente, sobre o acaso na psicanálise, temos, de acordo com tudo o que apontei, um longo caminho, mas, pelo menos, temos direções (tanto as quais seguir, como as que não devemos). Temos o caminho ontológico como já destaquei no capítulo anterior, e repito: não se trata de querer encaixar o acaso de qualquer maneira por eu “achar” que ele deve ser importante, mas por pensar que este desenvolvimento pode ser uma ferramenta muito útil na clínica psicanalítica.
A psicanálise ontológica continuará sempre presente, mas não de uma maneira específica, de eu dedicar textos exclusivos sobre: afinal, já ficou claro que não se trata de uma “escola” psicanalítica, mas tão somente de um ponto de vista, de uma ênfase a ser seguida, uma bússola muito importante a nos guiar. Por isso ela foi exposta aqui. Para o estudo do acaso, eu proponho três frentes principais que englobam a grande variedade de temas que têm de ser analisados, e as nomeio: Tempo, Espaço e Acaso (esta última, englobando as duas anteriores). Abaixo vou escrever, não de maneira sistemática, nem necessariamente em ordem, principais assuntos que compõem cada uma dessas frentes.
Por Espaço, eu considero, de maneira geral, o ambiente científico de Freud, no qual ele se formou e criou a psicanálise, que sempre levou a marca de um tipo de ciência (positivista) de grande sucesso e domínio no seu contexto. Neste espaço, a maneira como o acaso (não) aparece na obra de Freud é importante, pois reproduz, de certa forma, como foi feito na tradição em que ele se fez. Desta maneira, uma investigação desta tradição se torna essencial para nós, para entendermos opiniões atuais sobre o acaso inclusive, além das de Freud, claro. Um foco fundamental neste escopo é a noção freudiana de determinismo psíquico, claramente inspirada na ciência de sua época e, mais ainda e consequentemente, seu conceito de sobredeterminação. Ainda que “tímido” como “oficial” da psicanálise, é de extrema importância para vermos como Freud trabalhava a questão. Porém, não é suficiente: temos de ir além para que possamos entender como o acaso pode ter lugar na psicanálise. Por isso, eu vou propor outra maneira de compreendermos a sobredeterminação, mais moderna e relacionada com a mecânica quântica, e também mais clínica, apontando para o conceito de transferência.
O Tempo irá tratar, justamente, das questões temporais, em larga escala. A entropia, segunda lei da Termodinâmica, é a responsável pelo estabelecimento da irreversibilidade temporal. Isso é crucial para nós: se o tempo é reversível (que é uma visão antiga), não há, de modo algum, espaço para o acaso (pois há previsibilidade). Como é isso na psicanálise? Este é um mundo profundamente maravilhoso, mas extremante intrincado. Assim, destacam-se, para o nosso estudo, a noção de repetição (tão crucial na psicanálise), de regressão, e o “conceito do tempo” de Freud, o Nachträglichkeit, que traz problemas até de traduções! Para nós, brasileiros, geralmente é traduzido por a posteriori (que é latim!), mas o que nos interessa ainda mais é o sentido desta noção; o sentido que a questão temporal pode ter na (clínica da) psicanálise. Por si só, isso já é bastante coisa e muito complicado, mas há mais. Se o tempo não é reversível, significa que ele é linear? Mesmo que muitos tenham ataquezinhos quando digo isso, há muito de entendimento linear do tempo em Freud (a regressão é exemplo), o que não é de impressionar nem um pouco se sabemos sua descendência científica; porém, Freud é tinhoso: ao mesmo tempo, ele nos fornece algo diferente disso, mas, evidentemente, não de forma clara. O que irei propor é pensarmos como ficam os tempos (passado, presente, futuro, e outros também!) na psicanálise, como podemos pensar e trabalhar clinicamente com eles, e esses pontos que salientei servirão como início. Afinal, isso é importante não apenas para falarmos do acaso, mas para considerarmos a psicoterapia psicanalítica mesmo, e nessa abordagem ontológica que proponho: a transferência, por exemplo, continua importante, claro, mas não no sentido de interpretar a posição que se é colocado nela, mas mais de a vivenciar com o paciente como já destaquei. O que quero dizer, e aí há uma diferença, é: não é interpretação da transferência para separar o passado do presente que estão confundidos (como Freud propôs), mas aceitar que eles são “confundidos” e, mais ainda, trazendo o futuro como elemento tão importante quanto neste “desarranjo”. É o que já citei da mecânica quântica, que tanto passado, como também o futuro, são “escritos” no presente, todos estão e continuam acontecendo agora. A história não é contada retroativamente.
Com isso (ou após isso, ou até antes disso, não faz diferença!), o capítulo do Acaso é, obviamente, o mais importante, já que ele se utiliza dos desenvolvimentos dos capítulos anteriores, Tempo e Espaço, para podermos teorizar o acaso na psicanálise. Como isso será feito? “Teorizar” significa que teremos desenvolvimentos na teoria, pois, como falei neste artigo, ela é importante e necessária para a nossa clínica; porém, não vai se tratar de um tipo de metapsicologia de fato (tal como abordado aqui, de ser o principal), mas alguma teoria necessária para sustentar o que tentaremos elaborar na prática psicanalítica. Repetindo, a presença do acaso move o tratamento de um desvelamento da verdade para uma criação de verdades (o que tem toda uma acepção temporal). O caminho é o da psicanálise ontológica, no sentido de estar focado na clínica (que já explicitei ser o único caminho possível). Deste modo, para termos uma teoria que inclua o acaso, a metapsicologia tem de ser questionada (não em seu todo, mas em vários pontos importantes); porém, necessário que isso seja, a atenção maior será dada para a clínica. A mudança de foco/atitude que mencionei, do desvelamento para a criação de verdades, por não acreditarmos que exista uma verdade para ser descoberta, provoca reflexões essenciais. Para citar algumas principais que já estão no radar, a relação transferencial tem de ser repensada e, como consequência, a interpretação também, afinal, seu objetivo clássico não mais se sustenta.
O modelo de Winnicott do campo transicional é certamente o melhor para o que proponho. Há um aspecto que me parece primordial na “clínica do acaso”, e que se encaixa neste campo, que é a atitude, mais o “estado de espírito” do analista (o que envolve a transferência, a interpretação, as “associações livres”, etc.). Vai ao encontro do conceito de Bion de rêverie, que, de certa forma, assemelha-se como o que Freud falou sobre o devaneio, o daydream, e também faz com que tenhamos de os diferenciar da fantasia. O que eu penso desta “conduta” necessária ao analista, chamo de twilight, que pode ser traduzido por “crepúsculo”, o que também nos remete aos “estados crepusculares” de Breuer e Freud (além da famosa série americana “Além da imaginação”, “The twilight zone”, que, acredite, será tão importante quanto!). O twilight guarda, evidentemente, correspondências com os outros constructos recém nomeados; porém, ele é diferente de uma forma mais adequada para o nosso estudo. Não é só ímpeto de querer inventar palavra nova dizendo a mesma coisa! É necessário encontrarmos novos nomes para coisas que não correspondem ao que já temos.
É bastante coisa! E não necessariamente nessa ordem que coloquei; as temáticas irão se construindo conjuntamente. Cada elaboração necessita da anterior e da próxima para a apreensão; são materiais escritos/pensados concomitantemente. Deixaremos, digamos, ao acaso, ou o deixando agir e o valorizando com certeza para que a “ordem” que os textos serão escritos/publicados se forme. E confiarei nisso. Isso por si só já é significativo: o caminho é feito no caminhar (de alguma forma, Freud já disse isso...), não há predeterminações aqui (mesmo que exista um projeto: a presença do acaso não elimina, nem pode, causas e planos em nossas vidas – o que não quer dizer, por isso, que o acaso não exista e não tenha importância!). Talvez, algum prólogo seja necessário. Dois ou três textos para explorar as definições de acaso que eu sigo (que são do acaso em si!), e também o tratamento que o acaso (não) teve na história científica, começando pela filosofia até o século XVII, até a psicanálise que é o nosso interesse, e os motivos pelos quais nunca esse estudo se criou, pois nunca chegou a ser sobre o acaso mesmo, além de vislumbrarmos possibilidades de trajetórias.
Não é só esta “empreitada do acaso”; sim, este tema me persegue (ou eu o persigo) desde sempre e há motivos clínicos para isso. Vai além. Há, e espero que isso tenha ficado posto aqui, todo um intuito mais amplo e altamente importante: a clínica psicanalítica e seus resultados. Este parece ser o objetivo maior. Aí, vamos desde as famosas (ao menos para nós, ouvia-as desde a faculdade, e por vezes de uma forma distorcida) críticas de Popper (1987) à psicanálise até, por exemplo, as produções de Otto Kernberg sobre as possibilidades de pesquisas para avaliar a eficácia da psicanálise (KERNBERG, 2006), coisas que (a maioria dos) psicanalistas não gostam de ouvir e se rebelam automaticamente contra. O estudo de Karl Popper, exemplificando, é altamente qualificado, oferece muitas coisas importantes para pensarmos, tem todo um fundamento; as respostas (dos psicanalistas) é que parecem serem vazias e mais cheias de fanatismo. Foi o próprio Freud que iniciou o discurso da “defesa da psicanálise”, mesmo quando esta já era bastante aceita mundialmente; tem a ver com suas questões pessoais, é bem simples ver isso lendo sobre sua vida. Muitas vezes, parece que herdamos esta postura bélica. O próprio Popper rasga elogios a Freud em sua crítica, mas essa parte parece que é eliminada, pois ele “falou mal”, então “temos de defender a psicanalise”. Defender do que? Se a psicanálise perde (e não acho que esteja) seu lugar mais proeminente é porque ignorantes que não a conhecem falam mal dela (existem muitos, sim, mas Popper, por exemplo, não é um deles...) ou porque ela está ficando para trás na evolução do mundo, de como as coisas realmente são? Eu acho que este é um questionamento muito válido. Não é atacar ou defender: é pensar sobre.
Nossa irritação é para resguardar a psicanálise (nossa posição privilegiada de psicanalistas)? Não deveria ser para aprimorar a qualidade do tratamento, que é o real objetivo da ciência criada por Freud há mais de 100 anos? Ou esse não é o real objetivo da psicanálise?
REFERÊNCIAS
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[1] “From the perspective of ontological psychoanalysis, it is not the knowledge arrived at by patient and analyst that is the central point; […] but in experiencing the process of becoming more fully himself”. Tradução minha, como todas as outras. [2] “If only we can wait, the patient arrives at understanding creatively and with immense joy, and I now enjoy this joy more than I used to enjoy the sense of having been clever. I think I interpret mainly to let the patient know the limits of my understanding”. [3] “[...] an experience in which the patient is engaged not predominantly in searching for self-understanding, but in experiencing the process of becoming more fully himself”. [4] “By contrast, therapeutic action characterizing ontological psychoanalysis involves providing an interpersonal context in which forms of experiencing, states of being, come to life in the analytic relationship that were previously unimaginable by the patient”. [5] Strachey, no último parágrafo da introdução desta série de artigos técnicos na tradução standard inglesa (vol. XII), comenta que o questionamento mais forte por parte de Freud sobre a possibilidade de analistas não médicos (e sua defesa quanto a isso) só veio mais tarde (FREUD, 1926/1996). Nos dois únicos artigos especificamente sobre técnica psicanalítica escritos no fim de sua vida, mas imensamente importantes (FREUD, 1937a/1996; 1937b/1996), a palavra “Arzt” (médico) simplesmente não aparece; é substituída por “Analytiker” (analista), o que fala em nome de uma autonomia da psicanálise. [6] David Zimerman conta um ótimo exemplo desse tipo de atitude, em sua análise pessoal, contextualizando-a de forma muito sensível (ZIMERMAN, 2008, p. 113-117). [7] “Criança terrível” em francês, o termo serve para designar uma criança notável por dizer coisas embaraçosas aos adultos (pais). É uma noção que ficou com a ideia de alguém jovem, geralmente, independente e inteligente que, até por isso, cria problemas para o status quo (“estado atual das coisas”). Luz (2010) escreveu um pequeno artigo muito bom mostrando a vanguarda de Ferenczi. Ela também destaca a cura “[...] a partir de uma nova vivência emocional” (p. 20) [Grifo meu]. A autora ainda mantém este tipo de tratamento, baseado em uma comunicação não verbal, mais relacional e com a presença real do analista, como direcionado aos casos mais regressivos (psicoses, borderline), continuando a técnica tradicional da derrubada da repressão via interpretação da transferência imperando para “neuroses comuns”. Eu penso que este “caminho” inaugurado por Ferenczi deve dizer sobre qualquer tratamento psicanalítico. Sempre lembrando que não se trata de “um pelo outro”, mas de uma convivência (ainda que eu considere que o peso deve ser modificado, em favor da perspectiva relacional). [8] Loparic (2008) destaca, o que acho que deveria ser uma obviedade, que Freud sempre admitiu que a metapsicologia psicológica que ele criou pudesse ser algum dia substituída por uma física, ou seja, uma metapsicologia neurológica, hesitando, na sua teorização, entre a psicologia e a biologia. O autor nos lembra disso fazendo uma crítica; eu sou mais favorável a isso. [9] “Is it because they can give the appearance of a common understanding when such understanding does not exist?”. [10] “[...] the most fundamental aspects of one’s states of being and becoming: ‘Who (what kind of person) do you want to be now, at this moment, and what kind of person do you aspire to become?’”. [11] “From this perspective, chance, in all of its forms, plays a powerful role in determining the limits of the sort of person whom we might be able to imagine”. [12] “[...] experience of not growing, not changing, not becoming, is a state of being in which on is unable to dream […]”. Ainda que Ogden fale também objetivamente do sonho onírico, esta ideia é certamente ampliada para uma visão larga da palavra sonho. [13] “We all live in that sliver of time between then, referring to the past, and then, referring to the future, and we must sense the moment when the time is right for us to grow in particular ways”. [14] “I have always felt that an important function of the interpretation is the establishment of the limits of the analyst’s understanding”. [15] “If I make none the patient gets the impression thar I understand everything. In other words, I retain some outside quality by not being quite on the mark – or even by being wrong”. [16] “Analysis for analysis’ sake has no meaning for me”.
De novo, uma música se associou aqui (estou deixando o link porque no Instagram não vai ela inteira!). É do primeiro disco da "trilogia de Berlim", momento em que Bowie estava com sentimentos que não podiam ser expressos em palavras: daí as letras curtas e o lado B instrumental (nos dois primeiros). Esta canção é a última do lado A, já anunciando o que virá em seguida. Para além de outras coisas, tem a ver com boa parte do conteúdo deste texto: não é para entender, é para sentir...