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Perdas (sem danos?)

  • Foto do escritor: Juliano Corrêa
    Juliano Corrêa
  • 5 de jul. de 2024
  • 7 min de leitura

Uma vez, um amigo me disse, quando sua mulher estava grávida, que eles estavam evitando contar para as pessoas por um motivo principal: não estressar a mãe estreante com notícias de perdas na primeira gravidez. Eu nunca havia me dado conta, mas é verdade: é só dizer que está grávida, e tem algum infeliz que conta da fulana que perdeu o primeiro bebê (quando não é a própria que diz isso). Que falta de noção, né! Não tem nada melhorzinho para falar numa hora dessas? Que costume mórbido (para dizer o mínimo)! Mas noção é uma coisa que não está muito em voga nos dias de hoje, né.

Isso foi só uma pequena introdução, eu quero falar mesmo é sobre perdas, as reais, de um ente querido seja qual for, de bens ou esperanças, sejam quais forem. A dor da perda é, às vezes, o motivo da busca pelo tratamento psicoterapêutico, ou acaba acontecendo durante o processo, pois é um evento natural da vida. Algumas coisas me chamaram a atenção recentemente por proximidade afetiva da situação.

Você já escutou/viu alguma música no YouTube que falava sobre perdas, mesmo que não diretamente, mas que todos sabem que a inspiração foi essa? Pois então, leu os comentários? Se não leu, faça o teste. A maioria fala sobre perdas que tiveram (parece legal, né? Não é! Este é o meu ponto, vou, acho, chegar lá). Por exemplo, a bela música do Pato Fu “Canção Para Viver Mais”, de 1998. É uma homenagem ao pai da vocalista Fernanda Takai, que morreu de câncer aos 52 anos. Ao ver o pai definhando rapidamente (como acontece muitas vezes em casos assim), e percebendo que não teria mais volta, ela quis escrever uma canção para o seu pai. Anotou o título em um papel (o objetivo da música seria exatamente este!); porém, não conseguiu ir além do título. Seu marido e parceiro de banda, John Ulhoa, pegou o título (que é lindo, né!) e escreveu a canção que ela, dá pra entender, não conseguiu. Seu pai não chegou a ouvir; mesmo se tivesse, não teria vivido mais. Era um desejo muito grande. Uma dor muito grande. Pode haver beleza na perda, né? A canção é muito bonitinha! (O diminutivo é pela suavidade da voz dela, pelo estilo cuidadoso e carinhoso da música, é muito boa e altamente impactante: vou deixar a própria contando essa história no fim desta crônica).

Muitos sabem dessa história, não é segredo (se fosse, eu não estaria contando); mesmo que não saibam, pelo menos no link para este vídeo que estou deixando, há a explicação; e mesmo que não se tenha visto vídeos como este, porra, não dá pra imaginar que a música é sobre um luto que quem compôs está vivendo? E os comentários são (quase) todos no sentido de “eu também perdi meu pai não sei quando e não sei como”, “essa música me lembrou meu não sei quem que morreu de não sei o que”. Tudo bem, você pode estar me dizendo: “ah, Juliano, mas não é legal que as pessoas se identifiquem e, com isso, até possam elaborar melhor as suas perdas?”. Sim, é ótimo! A arte funciona mesmo nesse sentido também. Eu só acho que não é isso que acontece do ponto vista que estou querendo expor.

Ao invés de eu simpatizar com a perda de quem a teve, eu conto a minha. Você me entende? É tipo quando a pessoa pergunta “como você está?”, que é a pergunta padrão das relações sociais, mas raramente verdadeiras, e você responde com sinceridade, digamos, “estou péssima, destruída”. Aí o tal indivíduo, altamente preocupado com o teu bem-estar, “responde”: “pois então, tu nem sabes o que aconteceu comigo...”, e segue contando do dedinho que bateu no pé da mesa. Teu pai morreu, mas eu bati o dedinho na mesa! É assim: você está verdadeiramente dolorida, mas eu tenho de afirmar, em cima disso, a minha dor, seja atual ou passada. Ah, vai se foder, né. Empatia é o caralho! Ilusoriamente (faltou uma palavra melhor), pode se pensar que se está se colocando no lugar do outro (definição clássica de empatia), quando, na verdade, só se está usando a situação de dor alheia para expor a sua. Eu acho isso muito triste. Muito mais para quem está tentando fazer o seu sofrido trabalho de luto na mínima paz possível. Mas não é assim que acontece muitas vezes? Eu sei que tem de a pessoa não saber o que falar, aí conta uma situação sua achando que isso pode ajudar... por favor né. Eu aprendi desde muito cedo, na minha prática psicanalítica, que quando a gente não sabe o que dizer, o melhor é não dizer nada (ou, mais importante ainda, dizer algo só para mostrar que está presente, mas não para contar dos seus perrengues...). Ok, não é todo mundo que exerce a psicanálise; mas bom senso dá para ter.

O luto é uma coisa muito louca, eu tenho teorias sobre, mas não é o momento. Ainda assim, uma coisa que parece inerente ao luto é a culpa. Por mais bem resolvida que seja a pessoa, por menor que seja a culpa, a minha percepção é que ela sempre existe. Eu não vejo possibilidade de não haver culpa quando se trata de pessoas realmente queridas e importantes. Sempre vai faltar. Algumas pessoas, por vários motivos, pensam que podem fazer um “reservatório” para quando esta pessoa morrer. Entende? Tipo: vou ser um anjo para os meus pais, e isso sempre de maneira forçada, pois não se é assim ao natural (a não ser que você acredite em anjos e, além disso, ache que seja um!), e com isso eu vou estar tranquilo e sem culpa quando eles morrerem. Eu conto, ou você conta?

Não importa, podemos fazer o máximo: vai haver culpa no fim. “Eu poderia ter feito mais isso, menos aquilo, etc”. Talvez não haja o suficiente para fazer para quem se ama. Simplesmente não dá para criar reservatórios. Uma coisa que eu acho é que isso está relacionado mais com o futuro do que com o passado para onde tendemos direcionar nossa dor/culpa. Não é tanto o que não fizemos (até por termos feito muito em muitos casos), mas o que não podemos fazer mais. Sabe do que estou falando? É normal pensarmos “não a visitei muito”, ou, mais ainda quando a pessoa estava doente, “não fui a ver pela última vez”. Bom, a gente entende, mas é uma besteira isso da “última vez” na verdade, né. Mesmo em situações que soubéssemos disso, ia fazer o que? Qual grande ato nessa “última vez” que te aliviaria de qualquer culpa? É tipo confissão para padre isso? Extrema-unção? Eu sei, vai da crença de cada um, mas estou falando da nossa dor psíquica para além de qualquer outra dessas coisas, por mais nobres que possam ser.

Nós sabemos (Freud nos ensinou, há mais de 100 anos, naquele texto tão importante) que o luto, bem longe de ser uma condição psicopatológica, é normal, esperado e necessário. Não é só de morte, é sobre perdas em geral: uma mudança de cidade, uma troca de emprego, um amor perdido. Também sabemos que o tempo e a maneira do luto são diferentes para cada pessoa. Como a canção do Pato Fu diz, “o amor ainda estava lá”, quer dizer, quando perdemos alguém o amor pode se manter, e com muita força, só que de outro jeito. Nós levamos em nós muitas coisas das pessoas muito amadas que se foram. E também as deixamos ir (isso parece ser a “elaboração” do luto, não é? Não gosto dessa palavra, elaboração...). Não é certo egoísmo exigir a presença da pessoa para sempre, ainda mais em casos como da Fernanda Takai, com o pai com um câncer que era avassalador?

Agora, eu ainda acho que há outro tipo de perda (muitos outros, vou falar só de um que é o que me interessa). É uma perda do que não se teve. Parece louco, né? Mas não é. Eu falei acima sobre os “reservatórios” apontarem para o futuro; pois eu acho que existe uma perda (um luto, se você quiser) do futuro do pretérito composto (voltamos às aulas de português?), do que poderia ter sido. O que poderia ter sido/acontecido com aquela pessoa que esteve comigo, mas me deixou e, consigo, toda uma história que não foi escrita, ficou só na intenção; ou mesmo com aquela pessoa querida que eu nunca conheci, mas tenho profundas lembranças do que e de como poderia ter sido. (Veja, e isso é importante, estou falando do que poderia, não do que deveria).

Lembrança do que não foi? Antes de você abandonar esta crônica por causa disso, deixe-me dizer duas coisas, com toda a sinceridade: a primeira, mais leve, é comum na psicanálise termos lembrança do que não aconteceu (tem desejo, essa coisa toda); a segunda, aí eu forço mais, é que eu acredito hoje que este tempo verbal (e eu já digo psicanalítico) é talvez o mais importante. O futuro, a gente imagina (não no sentido de fantasia!), e é essencial; o passado, já foi, não dá para consertar, mas seus efeitos seguem sempre aqui, então, temos de fazer um tipo de lapidação ou esclarecimento, pois é fato consumado; agora, o futuro do pretérito composto é um mistério (e, por isso mesmo, muito mais interessante!), é algo que está no ar, (ainda) não realizado, pertencente, talvez, a vários outros tempos verbais/psicanalíticos (é diferente da repressão, não estou falando de algo inconsciente, ao menos não o inconsciente tal qual o concebemos). Não está aí uma grande base do nosso sofrimento? Fui além, isso deve tratado em alguns textos psicanalíticos.

A culpa vem ou faz parte da perda, isso é inerente a dor. A ideia de poder ter feito mais parece estar relacionada ao desejo de fazer mais agora, continuar fazendo, continuar o que não mais se pode. Mas se pode continuar. Há algum tempo eu tenho problemas com a maneira que, parte, pelo menos, da psicanálise lida ou entende o passado: como aquele massivo que determina a vida da pessoa e, assim, tudo de hoje deve ser resolvido no ou com base no passado. Mas não é que eu desmereça o passado! Só o penso de uma forma diferente dessa maneira mais ortodoxa. A gente continua, o passado (tanto quanto o futuro!) sempre permanece conosco, só que vai sempre se modificando. O luto “elaborado” não significa esquecimento ou mesmo superação, não é? Se for isso, não vale de nada: não acontece assim, segue aqui. Com as lembranças que são sempre vivas e sempre mutantes, justamente porque não estão mortas.

É só para alienados ou para essa raça de “coach” (é treinador né!) sei lá do que que pode existir perdas sem danos. Sempre há danos. Contudo, eles também são, não passageiros, mas mutantes, pois são vivos.

 

 

Abril/Maio, 2024.



Aqui, a belíssima música do Pato Fu, “Canção Para Viver Mais”. Coloquei um videozinho com a letra (e “quis” é com s, não com z né!).


Neste vídeo, como prometi, Fernanda Takai contando a história. Ela fala da morte do pai. Se você não aguenta ver um vídeo de quase 4 minutos, é aos 2 minutos que ela conta a história da música.





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