A vida é recheada de mistérios; essa talvez seja uma de suas qualidades mais inerente.
Há muito tempo, eu li o sensacional livro de Jonathan Swift, “As viagens de Gulliver” (se você não leu, leia sem receio, não vai se arrepender), que, aliás, não tenho mais, perdeu-se, assim como outros, naquele esquema de emprestar livros (e que nunca voltam...). É uma sátira estupenda sobre a condição humana, eu diria (e escrita em 1726!). Eu fiquei super impressionado ao ver palavras que eu conhecia nomeando coisas do universo de Gulliver, como Lilliput, a primeira ilha que ele visita, povoada de habitantes de 15cm, que era o nome do bar que eu ia por vezes na época da faculdade (que fechou, mas reabriu recentemente) que servia o melhor chope do mundo, com o colarinho cremoso; ou Yahoo, que para mim era o buscador de internet, mas é como os humanos selvagens que usam sua pouca razão para o vício são chamados no país dos Houyhnhnms, último local da sua jornada (sem falar que Gulliver mesmo é marca de brinquedos que eu bem conhecia na minha infância!). Os Houyhnhnms são cavalos com razão, mas bem mais que isso: são cavalos com um senso moral muito elevado. Eles são os responsáveis por Gulliver sentir nojo de sentar à mesa com humanos na sua volta para a Inglaterra. Para além da história do livro, e para o que nos interessa nesta crônica, Gulliver, após aprender a língua dos Houyhnhnms e fazer uma interessante troca cultural, tenta explicar o que é a mentira. Eles nem tem uma palavra para isso, chamando de “a coisa que não é”. Eles simplesmente não conseguem entender o conceito de mentira: se a comunicação foi feita para que se tenha entendimento, dizer “a coisa que não é” elimina completamente o objetivo principal da comunicação. Perfeito, né! Justamente por Gulliver não conseguir explicar para eles do que se tratava, ou melhor, para que servia a mentira, passou a ter ainda mais consciência dos seus iguais (humanos) e, por consequência, bem pouca vontade de estar com eles.
Realmente a mentira nos deixa confusos. Mas quem dera fosse só isso! A mentira é deliberada, é para enganar, assim, por mais contraditório que possa ser, não há engano sobre isso! Agora, como a Raposa sabiamente ensinou para o Principezinho, a linguagem é uma fonte de mal-entendidos, ou seja: eu posso te dizer objetivamente tal coisa com determinado objetivo, e tranquilamente tu podes entender algo bem diverso do que eu falei. Eu posso ver/ouvir algo e, pela minha fantasia/desejo, entender isso de inúmeras maneiras diferentes. Em uma sessão analítica, beleza: a gente interpreta e tal, sempre se ganha algo; entretanto, é realmente um inferno quando isso ocorre fora do consultório em uma situação na qual se está afetivamente envolvido...
Só que faz umas quase três décadas que estamos noutro patamar da confusão: as mensagens escritas por aplicativos de conversa e ainda por e-mail. Eu já recebi e-mails (estou lembrando os de algumas alunas reivindicando alguma coisa) que eu simplesmente não conseguia entender: não é disso que estou falando, não é sobre alguém com diploma superior que não sabe escrever (você já deve ter visto alguma daquelas postagens que brincam sobre como a mudança de lugar da vírgula altera completamente o significado da frase né!). Não, eu estou me referindo a quem sabe escrever (o mínimo que seja), mas, talvez inadvertidamente, coloca a confusão na sua breve escrita dos dias de hoje.
Já faz bastante tempo (mas já nos tempos “modernos”), que um amigo especial me pegou para confidente de sua angústia (fazíamos isso, e é o que amigos fazem né!). Uma guria de seu interesse amoroso havia lhe mandado um e-mail, o conteúdo era normal, nada de mais (eu não lembro qual era, mas, até por isso, deveria ser irrelevante mesmo – para quem vê de fora né! Para o apaixonado tudo é relevante nesse contexto); porém, havia um gigantesco problema: ela havia terminado o e-mail com três pontinhos...
O que isso significava??? Nossa, pode significar tanta coisa... Pode ser bom, pode ser péssimo, pode ser maravilhoso, pode não ser nada... Ele ficou irritado: por que ela foi colocar os três pontinhos? Por que não colocou um ponto final? Deixaria tudo tão mais simples... As reticências, colocadas assim, no fim de uma frase (como eu mesmo faço tanto), indicam uma interrupção, mas de uma sequência, de uma continuação de algo que, ou que eu não sei bem o que é ou que eu não quero dizer agora. Ou seja, é uma pausa de mistério. É ótima (eu acho) para tentar colocar em movimento a imaginação do leitor, coisas do tipo; agora, quando há o envolvimento, o desejo amoroso... aí as reticências são tortura. O que ela queria dizer (e não disse)? O que ela disse (sem querer dizer)? E por aí vai... Tu me entendes, né? É o maior tormento...
Eu também penso que outras pontuações podem causar o calvário dos três pontinhos em situações de apaixonamentos, principalmente nas nossas comunicações por aplicativos (e também por e-mail). Um exemplo: ponto final. Você coloca ponto final nas mensagens enviadas pelo WhatsApp? Eu não coloco (mas coloco reticências...), minha memória diz que a maioria das pessoas que me escreve, não são muitas, também não coloca. Aí, aquela pessoa especial, que sempre escreveu assim, de repente, não mais que de repente, mete um ponto final. O que significa? É o fim? Foi só distração que nem ela percebeu? Ou seja: foi intencional ou não? Na verdade, não é somente pontuação: o uso de uma palavra nova (pior ainda se for mais formal), diferente da que normalmente é (ou era) empregada... o que isso quer dizer? Só quem está apaixonado presta atenção nesse tipo de coisa, e sabe a dor de cabeça que dá...
Ainda assim, com todas as confusões que a linguagem em estado afetivo alterado provoca, eu acho que nada supera as reticências... São só três pontinhos né... mas que podem dizer tanto para os envolvidos... Mesmo com tudo isso, eu também vejo um aspecto que pode ser chamado de positivo no meio de todo esse sofrimento que só quem passa sabe o que é.
Como eu disse, as reticências anunciam uma pausa, mas para uma possível continuidade, ou seja, algo em aberto. Por mais dilema que possa haver, há uma possibilidade de futuro, pois não apontam para o passado certamente: há esperança. Em que? Não faço ideia, mas há a chance de que algo (ainda) aconteça. Pode até não ser muito, mas dá motivos para seguir. Se for ver por um lado, abre infinitas possibilidades... Com certeza, é muito melhor do que um ponto final...
Então, próxima vez que você escrever uma mensagem, considere isso, tenha carinho (se você tem) pelo receptor: pense bem na pontuação que você vai usar, não pelo português correto, mas pela interpretação que ela pode causar... a não ser que você queira mesmo plantar a dúvida, afinal, tudo é do jogo né...
Dezembro, 2024.