Há uma estupenda (com sempre) novela de Dostoiévski intitulada “A dócil”, de 1876, uma das, como o autor chamou, narrativas fantásticas, junto da não menos assombrosa “O sonho de um homem ridículo”. Mesmo eu não sendo crítico literário (bem longe disso), gosto de falar dessas coisas; porém, não é o momento. “Então por que começou falando disso?”. Calma. Em primeiro lugar, eu acho sempre bom quando se pode oferecer uma boa indicação de leitura. Em segundo lugar, eu não acredito que teria escolhido este título para a minha crônica se não tivesse lido Dostoiévski, afinal, “dócil” não é uma palavra que eu teria pensado por mim mesmo (havia começado a escrever usando “passivo”, que é correto, mas pouco poético). Assim, fica o reconhecimento.
Mas a inspiração é só na palavra mesmo. A dócil do russo genial não era tão dócil assim na verdade; vemos uma trama que tem até contornos mórbidos, o que leva o narrador a declarar para o fim (isso me arrepia só de lembrar): “Ah, a natureza! Os homens estão sozinhos na terra – essa é a desgraça! [...] O pêndulo bate insensível, repugnante. Duas horas da madrugada. As suas botinhas estão junto da cama, como que esperando por ela... Não, é sério, quando amanhã a levarem embora, o que é que vai ser de mim?”
Os(as) dóceis de que vou falar não tem nada de imposição/reação; tirando a tragédia, seria bom se tivessem uma proximidade um pouco maior com a “orgulhosinha” desta novela. “Quem são, Juliano? Que drama isso!”. Pois são os(as) psicanalistas em formação (ou seja, eu mesmo já fui um).
Há vários “tipos de formações” de psicanalistas, tenho opiniões bem claras sobre isso, mas não vou entrar neste tema agora, pois seria longo demais. Talvez possa tratar disso em uma crônica separada. Ainda que eu pense que o que vou falar abranja todas as possibilidades, o foco é onde acho que o fenômeno é mais comum: os analistas que estão em formação em alguma instituição psicanalítica, fazendo o curso direitinho, tudo aquilo. Esta é uma crônica polêmica. Não por querer ser, como eu sempre pareço ter desejado, mas porque é um tema que acho importante e tem bastante relação com coisas que, aos poucos, vou expondo nos meus textos psicanalíticos.
Sinto-me extremamente à vontade para falar disso, pois foi de onde eu vim. Muitos “colegas” odiariam o que vou escrever, porque fala deles/nós, mas não acho que eles lerão; e se, por acaso, lerem e não gostarem, foda-se né! Essa é a vantagem de ter um site e não precisar ser abalizado por mentes superiores.
A gente pode começar por um tipo de mito psicanalítico que existe há pelo menos quatro décadas: que psicanalista é tudo rico (por causa dos valores cobrados e, que ainda falaremos, de muita fachada). Uma vez, umas gurias que faziam grupo de estudo comigo foram para um congresso de psicanálise em Porto Alegre, “coincidentemente” da instituição onde me formei (fui eu quem indicou né). A volta delas foi muito engraçada, muitos comentários sobre não ter entendido nada do que falaram nas mesas (psicanalista gosta de ter língua própria), etc. Mas o que mais me chamou a atenção foi que elas me acusaram de não as ter avisado para levarem suas roupas de gala! Disseram que todos lá estavam vestidos como se estivessem no casamento da realeza, e que elas tiveram de dar um jeito de última hora para não se sentirem (e acabaram se sentindo) estrangeiras. Uma delas chegou até a dizer que aquela experiência a fez decidir ser psicanalista, pois psicanalista é tudo rico!
Não é só o fato de eu conhecer o ambiente em que elas estavam. Muitas coisas são públicas, qualquer um que se interesse pode saber, ainda mais nos dias de hoje (além de a fofoca sempre correr solta né). Mas é que o que eu achei mais engraçado, ainda que totalmente compreensível, foi elas acharem que os(as) tais psicanalistas lá eram ricos por causa da psicanálise. Você que está aqui por acaso certamente deve ler/ver psicanalistas “famosos” que expõem seus conteúdos (muitos de muita qualidade). A quase totalidade destes trabalha na universidade, e não em uma qualquer, ou seja, ganham bem lá. Alguns, inclusive, nem trabalham direito para justificar o que pinga na conta todo o fim de mês. Há outra parte de psicanalistas que já são ricos antes da psicanálise, por herança de família ou por sustentação matrimonial. (Veja, eu estou usando a palavra “ricos” aqui me referindo àquelas pessoas que ganham alguns ou muitos milhares por mês – fica mais complicado muito mais que isso trabalhando só na clínica –, que, às vezes, são as que acham que pertencem à elite, e ficam furiosas com taxação de ricos de verdade... ou seja, a pior espécie de burro que existe, pois tiveram oportunidades para deixar de ser. Sem escusas para essa gente).
É só isso então? Não é. Existem sim as pessoas que trabalham só na clínica psicanalítica, sem outra ocupação, sem herança ou matrimônio (rico), e têm seus horários lotados, ganham muito bem. Só parecem não ser a maioria; vi a vida inteira essa angústia pela distância do que é vendido e a realidade em pessoas que me procuravam para supervisão. A questão é que até a década de 1960, 70, psicanalista era artigo de luxo, existiam poucos; logo, sua agenda era de fato cheia, quer dizer que se ganhava muito bem. A partir da década de 1980 isso mudou. Hoje, é só chutar uma árvore que caem uns 10 psicanalistas (desses, uns seis nem são psicanalistas verdadeiramente, mas quem se importa?). Tem gente, eu conheci, que vende a ideia de ter agenda lotada (para superfaturar o preço? Achar-se importante?), quando é uma mentira. Digo isso com a maior tranquilidade porque já comprovei na prática. E há as outras pessoas que conhecemos, temos uma ideia de quanto cobram por seus atendimentos, de uma média de pacientes que têm: como sustentam a vida que levam? Na boa, não dá nem para pagar o condomínio (e ainda têm as viagens, ostentações nesses lugares “chiques” – que são uma merda...). É assim: no meu mundinho de fantasia, eu estou trabalhando, ganhando dinheiro, sendo psicanalista (o que é muito sedutor), mas isso não paga minhas contas, eu só faço as pessoas (e eu mesmo) acharem que paga.
Então, qual é o esquema? Não que não dê, é claro, mas viver exclusivamente da psicanálise hoje impõe dificuldades. Por várias razões. Pelos falcatruas, sim, mas vai além disso: o cuidado mental é muito mais divulgado e acessível, há mais concorrência (as de bosta, mas as de muita qualidade também que não existiam). Assim, começou-se a se criar, e eu acredito que tenha sido naturalmente, um grande esquema de pirâmide, uma antropofagia, que transforma a preciosa psicanálise em algo de fachada; não toda, é óbvio, mas uma boa parte em ilusão. Qual é? É bem familiar a todos (mesmo quem não tenha nada a ver com a psicanálise): você entra em um curso de formação, faz todas as coisas exigidas gastando pequenos caminhões de dinheiro, principalmente com sua análise pessoal, tão necessária. Você acha que terá este mesmo retorno dos seus pacientes “comuns”? Não vai né. Então, por que se faz? Porque você ascende ao posto daqueles que foram seus analistas e supervisores para estar num lugar de poder fazer o mesmo com quem queira chegar ao seu lugar que já foi o deles. Entendeu? É simples.
Óbvio que existe um juiz ou um neurocirurgião no meio dos pacientes, mas esses “grandes” psicanalistas que cobram tão caro e tem a agenda falsamente cheia têm sua clientela basicamente formada pelos candidatos a psicanalistas. E estes são dóceis. Eu mesmo já fui, muito. Talvez um exemplo ajude, dos que já vivenciei: as férias.
Aprendi que é assim: eu, analista, falo, logo no início (no que chamamos de “contrato”), para a pessoa quando são as minhas férias, e ela deve se adequar a isso. Tal como: minhas férias são em fevereiro, então, trabalhamos o ano todo e “folgamos” em fevereiro; caso o analisando queira tirar férias, digamos, em outubro, ele pagará por aquelas sessões, pois “nossas” férias são em fevereiro. A ideia que me era vendida era de que o tal paciente vai se adequar a minha agenda. Por um bom tempo, no início, eu tentei fazer isso, pois eu queria ser como os meus modelos; nunca funcionou. Simples: eu forçava a adequação das férias, mas a pessoa (não passiva) meramente dizia: “então tá, eu paro minha análise aqui e te ligo quando eu voltar para marcarmos um horário”.
Eu não atendia (e, de forma geral, ainda não atendo) dóceis. Além disso, eu não atendia pessoas em 1970, que era de onde essas recomendações vinham. Eu tentava me adaptar a algo que não era meu, não era da minha realidade, o que fazia minha clínica ficar de fachada, falsa, em nome do que eu acreditava ser a “verdadeira” psicanálise. Mas meus pacientes não tinham o objetivo de ascender psicanaliticamente, eles só queriam melhorar! Então, claro que eles não aceitavam essas coisas que a realidade não mais suportava. Não era, como já tinha sido, que ele tirar as suas férias impediriam a continuação da análise: havia vários outros analistas, e eu mesmo tinha horários!
Eu sei que existe uma coisinha chamada transferência que é a base do tratamento psicanalítico. Isso cria e mantem o desejo de se analisar com aquela pessoa. Então, claro que ocorre adequações desse tipo (ainda que sempre sejam de mão dupla!). Agora, a pessoa trabalha em uma empresa, suas férias são automáticas, ela não pode, ou pode muito pouco, decidir quando as tirará: como ela irá se ajustar? Exigir isso é estar desconectado com a realidade.
O que eu ia fazer? Duas questões aqui. A primeira: eu recebia instruções para não oferecer, sob hipótese alguma, o mesmo horário quando tal pessoa retornasse; tem a ver com a ideia de castração: não se pode ter tudo, seu desejo sempre implica em uma renúncia, etc. Eu não concordo mais com isso da maneira que trabalho, ainda que seja totalmente válido e teoricamente (muito) sustentado. Para ser bem sincero com você, tirando casos específicos nos quais é realmente necessário, eu acho isso uma besteira. Eu sou – tento muito ser – um analista disponível (por isso, também, cobro caro, mas aí já é outra conversa). Mas isso se torna sem valor frente ao conselho que eu recebia, o que leva à segunda questão: o que eu iria fazer? Não o aceitar de volta? Tipo vingancinha? Ainda mais eu, que tinha real necessidade de pacientes! Então, o que caracteriza o paciente dócil (isso, relembrando, para além da relação transferencial que sustenta o tratamento quando as coisas não vão muito bem, períodos improdutivos, etc.)?
Os dóceis aceitam tudo. Meu analista tem uma maneira de trabalhar que não parece suficiente para mim? Aceito. Meu analista tem protocolos que vão de encontro (até eticamente) com o que acredito? Aceito. Tenho de fazer verdadeiros malabarismos na minha vida por causa das férias do meu analista (num processo de mão única) porque ele “não tem mais horários”? Aceito. É exigido pagamento em dinheiro (o que hoje em dia, por favor né...)? Aceito. Faço até piada disso com colegas, que estão na mesma situação, para fingir normalidade. Minha análise vai durar 20, 30 anos porque ele (obviamente) não me dará alta, e eu não tenho coragem de falar sobre isso? Aceito. E por que? Ora, qualquer um que conhece os interiores da instituição psicanalítica sabe que interromper sua análise e/ou trocar de analista não pega bem (isso quando não prejudica objetivamente sua formação, ou seja, seu caminho para chegar ao topo da pirâmide). E a gente não quer se queimar né? Entende? A análise de um “candidato” (essa palavra nem é boa) é tão importante quanto qualquer outra (talvez até mais), pois é claro que o futuro/atual psicanalista tem seus sofrimentos, sintomas, traumas (não tivesse, duvido que teria escolhido essa profissão!). Então, é óbvio que é (deve ser) uma análise de verdade; porém, ela corre o sério risco de virar, em grande parte, de fachada, como a psicanálise fica por vezes, com base no que falei acima, quer dizer, sem estar voltada para o mundo real. Afinal, tratar somente os aspirantes a psicanalistas é, com efeito, o mundo real desse jeito que acontece? Pacientes do mundo real não são (e que bom que não são!) dóceis.
Eu sei que Freud disse (e muito bem dito!) que a analista deve, de tempos em tempos, retornar para a análise para um tipo de reciclagem. Isso é muito verdade. Como trabalhamos com a matéria, nosso próprio tratamento é fundamental. Você conhece algum analista sério (de mais idade, ok) que fez só uma análise na vida? Eu acho isso salutar. Mas veja, é diferente do que se analisar por décadas com o mesmo analista! Eu fico pensando: se em 25 anos, algumas vezes por semana (faça as contas disso!), eu ainda não tive a tal da “alta”, nós vamos chegar nisso quando? Mais 15 anos? Para eu estar “pronto” com 64 anos? Tem gente que discorda frontalmente do que acabei de escrever, ok, sem problemas, devem ter argumentos para isso; eu vejo tal situação como altamente antiterapêutica. Eu acompanho a ideia de Winnicott, de que a pessoa se trata para viver, não vive para se tratar. O objetivo do tratamento é ter uma vida melhor, fora da análise.
“Ah, mas então todas as análises devem estar concluídas com sucesso em determinado tempo? Isso é bem contra os pressupostos da psicanálise, hein!”. Bom, depende do que se pensa por “concluído” e “sucesso”. Eu acredito que há um momento (que não é pré-fixado, obviamente, mas com certeza é menos que 20 anos!) em que o trabalho se encerra. Então, não deu certo? Deu sim, justamente deu o que tinha pra dar. Eventualmente você sentirá necessidade de análise de novo? Ótimo: há vários analistas por aí, procure outro, tenha uma nova história. Eu acredito muito nisso. É como o casamento de tantos anos que terminou. Deu errado? Não sei, eu acho que deu certo enquanto durou (não acredito naquele “para sempre” da Igreja). Salvo algumas exceções, você não se casa novamente com o mesmo parceiro né? (E nem fica – ou talvez não devesse – em um casamento que já deu o que tinha pra dar).
Talvez, não é só isso, este seja um dos motivos de a psicanálise se manter, parte dela, retrógrada e, por consequência, fechada. Qualquer ideia nova ou possibilidade de expansão é prontamente rechaçada, com o disfarce de “proteger a psicanálise” (do que será?). É tipo: “vamos continuar no nosso esquema que está dando certo (para nós)”. Eu já soube de psicanalista dizer que Freud estava ultrapassado, deveria se estudar Lacan (soube também já do mesmo sobre Melanie Klein...). Tá de brincadeira né? Eu acho que ambos são (na verdade, podem ser) muito atuais, e esses que lançaram bases devem ser estudados para irmos adiante, e que também devemos estudar autores contemporâneos, não comentadores, e sim aqueles que tentam fazer algo novo. Agora, essa diferença? Então, o cara que escreveu a última coisa lúcido há 50 anos é o “atual”? Estamos perdidos. Onde está a atitude questionadora?
A psicanálise, do jeito que aprendi (ou entendi...), é selvagem, contestadora por natureza, como até falei em outra crônica[1] e não pode ser diferente: a gente trabalha pela mudança na vida das pessoas. “Paciente” é só na terminologia. Como fazer psicanálise ou se fazer psicanalista sendo dócil?
Julho – Outubro, 2023.