Já faz um tempinho, um amigo especial me indicou a série documental (muito boa!) de três episódios, “Desastre total: Woodstock 99”, disponível na Netflix. O título é autoexplicativo: foi uma ideia de reeditar o clássico festival de 1969 na celebração dos seus 30 anos, e foi sim um desastre total, considerado por muitos o pior festival de música da história.
Eu gostei bastante (do documentário né). Mostra tudo muito bem, através de entrevistas com pessoas envolvidas, público e produtores. Dá para ver o caminho para a desgraça, da péssima organização, mal estar da multidão, passando pela falta de sensibilidade de perceber que coisas estavam dando (bastante) erradas, como o atiçamento de pessoas já bem fora de si, até a “brilhante” ideia no show derradeiro, do Red Hot Chilli Peppers, de distribuir velas para as pessoas para um cover de “Fire”, do Jimi Hendrix, sem a menor noção do que estava acontecendo lá. Resultado: o público levou ao pé da letra e colocou fogo no lugar! Literalmente, eles quebraram e incendiaram tudo! Isso foi só o fim de uma enormidade de absurdos que já vinha acontecendo nos dias anteriores. Veja a série, eu não vou descrever todas as absurdezas, meu objetivo é outro.
Tudo foi pessimamente planejado naquele festival, mas eu não quero fazer uma análise disso (análises são feitas no documentário). O que eu ficava pensando, desde o início do primeiro episodio, era: como alguém pode ter achado que isso era uma boa ideia?
A obviedade da maluquice para mim era: como reproduzir algo de 1969 em 1999? Outra geração, outro contexto, completamente diferente! Da de 1969, eu tenho só leituras; mas daquela de 1999, eu fazia parte, eu “tinha a idade” para estar naquele show, conheço bem como era, daí ser muito claro o disparate de pensar um contexto hippie para aquelas pessoas, até porque tal contexto, como é bem mostrado na série, não foi criado, pois, é claro, era impossível! Por isso a minha incredulidade da insanidade da ideia. Vamos aos (alguns, pelo menos) pontos.
Eu até acho que aquela (“nossa”) geração poderia comprar a ideia de um Woodstock, e muita gente comprou mesmo, é mostrado isso. Problema é que o Woodstock original era genuíno, aquela coisa de “paz e amor”, comunhão e tal, era realmente verdade, e isso vale para todos os envolvidos, inclusive os da produção. Já no festival “moderno”, esse clima era só no discurso, pois o objetivo era (oh, que surpresa) ganhar dinheiro. Então, aquela galera foi naquele clima “hippie” por alguma nostalgia externa, porque gostavam das músicas daquela época e/ou por histórias que conheciam, mas encontraram água (assim como qualquer tipo de comida) custando 17 dólares, com a água de graça tendo terminado. Isso em um calor de 37 graus com nenhuma sombra para se proteger. A sensação de exploração era clara, contrastando com o que (talvez) se esperava encontrar. Os banheiros químicos faliram. Enquanto as pessoas de 1969 rolaram na lama achando legal, festejando a chuva ou algo do tipo, estas rolaram (tentando replicar o impossível) literalmente na merdapelas falhas da preparação, o que trouxe casos graves de doenças por contaminações de todos os tipos (e, importante, com tudo isso os produtores ainda continuavam dizendo que estava “tudo bem”, eram só pequenos contratempos). Mas eu ainda estou falando da (péssima) organização; a insanidade que pensei vai além disso.
Um exemplo: nós temos imagens das pessoas, no Woodstock de 1969, todas peladas, homens e mulheres juntos, banhando-se. Ora, aquele era um movimento de libertação, estar sem roupa era uma atitude revolucionária e compartilhada, havia um significado e uma mensagem naquele comportamento: todos estão à vontade e de acordo com aquele estilo. Minha geração não é assim! Então, evidentemente, em 1999 algumas pessoas (mulheres) entraram no clima de 30 anos atrás e começaram a tirar a roupa. O que aconteceu? Uma série de assédios e estupros em pleno festival. Não havia o sentido de outrora, e, mais uma vez, o contexto era completamente outro.
Aquela geração não era um “contraponto” do hippie, como foi o punk, escrevi sobre isso em outra crônica;[1]porém, já havia tido o punk, tivemos o grunge no início dos anos 1990, então, ainda que não fosse totalmente anárquica, tinha um pouco disso. Pelo menos, podemos dizer com certeza que não carregava as flores nos cabelos como os hippies. O que quero dizer é que esta minha geração era muito mais agressiva (o que não é preciso ser muito para ser mais que os hippies né!) e individualista, tanto que (ainda vou escrever sobre isso) filmes como Trainspotting e Clube da Luta são definidores daquela geração. A droga não era a maconha para relaxar ou o LSD para expandir a mente, era o ecstasy para enlouquecer (nunca usei, li sobre). Entende? Como você quer reproduzir um festival hippie para este pessoal? Não foi só o descontentamento pelo desrespeito sofrido pelas instalações oferecidas, teve a ver com as características do público também: supor uma geração fora do seu contexto. O que aconteceria se puséssemos uns hippies dos anos 1960 em um show do Nirvana ou, mais ainda, do The Prodigy? É como, exagerando, colocássemos os dinossauros aqui nos dias de hoje, algo fora de contexto. Vai dar merda né! Há 6 filmes (sobre os dinossauros) que mostram que isso não é uma boa ideia...
Eu fico sempre batendo na mesma tecla (contudo, se você me lê, sabe que não é sempre a mesma!), mas são só coisas que eu acho curiosas, os fins que coincidem. Deixem Woodstock histórico, ótimo e importante (tem um documentário clássico sobre também) onde está. É uma insanidade (querer) voltar no tempo. A gente não precisa de um novo Woodstock, precisamos é de coisas novas!
Dezembro, 2023.