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Corolário

  • Foto do escritor: Juliano Corrêa
    Juliano Corrêa
  • 18 de abr.
  • 8 min de leitura

Eu publiquei aqui uma crônica sobre o Nirvana, mais especificamente sobre a especialidade do disco Nevermind e a minha (triste não) relação com ele na época.[1] Em um momento, talvez para falar da minha reação a ouvir inteiro e com atenção, depois de tantos anos, aquele disco tão importante e extraordinário, usei a palavra estupefato. Chamou a minha atenção. Estupefato. É que eu não gosto nem um pouco de usar palavras, digamos, diferentes, que não são usuais da fala, que faz a pessoa ter de procurar no dicionário (hoje chamado de Google) muitas vezes. Quando as uso, é pelo último recurso de tentar evitar (o que geralmente não consigo de forma plena) a repetição de palavras na escrita, um cacoete fortíssimo que eu tenho e que acho feio, ou simplesmente porque tais palavras acabam, estranhamente, vindo naturalmente.

Eu me sinto um pouco desconfortável, pois me soa falso, pela maneira que sou, quando uso um termo que eu considero mais “chique”. Tudo bem, tem gente, penso eu, que escreve assim ao natural, faz parte do estilo; porém, provavelmente por causa desse meu posicionamento pessoal, geralmente eu acho pedante (ó, outra palavra chique!). Para mim, isso sempre dá a impressão de querer aparecer, mostrar-se inteligente e, por consequência disso, superior, mas sem o ser!

Sabe, é aquele tipo de lacaniano (existem sim tipos diferentes, não é justo, apesar de já ser folclórico, colocar essa pecha em todos os lacanianos, até porque há muitos não lacanianos – e nem psicanalistas propriamente ditos! – que agem assim também) que acha a coisa mais legal do mundo escrever um artigo que ninguém entende porque acha que é assim que se faz e, pior de tudo, acha que o próprio Lacan era “difícil” de propósito. Eu tenho horror disso! Lacan mesmo se dizia um barroco, ou seja, era um estilo muito próprio (não algo forçado como muita gente faz para parecer... requintado!). Além disso, ele fazia esforços para tornar seus textos mais palatáveis (pode ler biografias dele, isso está posto, a da Roudinesco é uma boa).

Além do meu desgosto pessoal por isso, eu também penso, o que é ainda muito pior, que é um verdadeiro desserviço ao aprendizado. O grande valor do conhecimento que, por sermos privilegiados nesse sentido, adquirimos, é expandir, multiplicar o saber que temos como já falei em outra ocasião.[2] Quando “inventamos” uma linguagem que só é acessível para um pequeno grupo seleto, que valor tem? É para ficar se masturbando em um grupinho de sabichões? Não conte comigo!

Nunca é demais lembrar: Freud escrevia simples. Exímio escritor, e simples. Não estou dizendo isso porque “eu acho”, ou porque eu leio Freud em alemão (não leio, infelizmente), mas porque há pesquisa sobre isso. De pessoas alemãs comuns, quer dizer, leigas na psicanálise (porque, vamos combinar né, boa parte dos psicanalistas não são comuns!), lendo o texto original de Freud e dando suas opiniões quanto a dificuldade. Não a dificuldade da teoria, pois essa é difícil mesmo, mas sobre a escrita. A maioria achava fácil: muito bem escrito, fluente, e com palavras correntes. Freud fazia até questão disso, de não usar palavras difíceis. Tem-se de se escrever muito bem para escrever fácil.

Pois há uma palavra dessas que é a mais significativa para mim e, de uma forma até estranha, ela me acompanha por toda a vida: corolário.

Eu nunca soube o que significa esse diabo de palavra. Antes de você, sabichão ou sabichona, vir me dizer a definição (talvez por ter pesquisado como eu), deixe eu explicar. Eu sei, intelectualmente, o que quer dizer. A definição do dicionário: “verdade que deriva de outra”, ou ainda “proposição que deriva, em um encadeamento dedutivo, de uma asserção precedente, produzindo um acréscimo de conhecimento por meio da explicitação de aspectos que, no enunciado anterior, se mantinham latentes ou obscuros”. O que acontece comigo é de outra ordem. Eu já li diversas vezes o que ela significa, até porque ela parece me perseguir: são vários os textos que leio nos quais esse termo do demônio surge. Inclusive, veja só o nível da insanidade: durante a maior parte da minha vida, eu tive a certeza absoluta de que Shakespeare tinha uma peça intitulada “Corolário”. Foi só depois de muito tempo que eu soube que não, que era uma projeção (quase alucinação) minha: a tragédia grega se chama Coriolano, por causa do general Caio Márcio Coriolano... Eu é que lia automaticamente: Corolário!

Então, voltando: todas as vezes que leio a definição, eu a entendo, mas, no mesmo instante que estou lendo e entendendo, já está me escapando, foge totalmente de uma compreensão real. Ou seja, eu sou refratário a entender esta palavra! Eu estudo coisas de mecânica quântica que consigo ter melhor entendimento (que, como Richard Feynman disse, ninguém entende, talvez por isso eu me sinta melhor) do que esse raio de palavra. Eu tenho, juro, dificuldade até para pronunciar! É um trava-língua para mim: corolário... tenho de me concentrar para dizer. E para dizer algo que eu não sei o que é!

Falando em mecânica quântica. Eu usei muito essa teoria na minha tese de doutorado, foi o meu principal apoio, o que eu acho muito justo, pois a essência de Freud era as ciências físicas, não a filosofia ou qualquer outra coisa que hoje parece ser obrigatório. Ok, isso é outra discussão. Mas eu falei da minha tese porque, lá pelas tantas (bem pelas tantas), eu pensei, e até discuti isso com um bom amigo que aprovou minha ideia: se há um lugar onde que posso/devo usar “corolário”, é na minha tese de doutorado. Era o meu momento, não haveria outro assim.

Então, em determinado instante, eu escrevi: corolário. Que alguma coisa era o corolário de outra (não lembro o que, e não fui conferir: não importa, né). Nossa, ficou lindo! Está lá, escrito com autoridade: corolário. Agora sim eu poderia ficar tranquilo, pois minha erudição muito acima da média estava mais do que comprovada. Que orgulho de mim mesmo! Que diploma de doutor que nada! Foi isso que me colocou no panteão dos pensadores e das pessoas inteligentes.

Um pouco de contextualização necessária. Duas coisas, na verdade. Minha tese foi escrita na pandemia, o que alterou muito do que poderia ter sido. Isso não quer dizer que ela não é séria, não é que eu fiquei fazendo pegadinhas ou experimentos desse tipo! Tanto que muita coisa que você lê, se lê, do que eu escrevo, é derivado dali. Agora, ela foi, desde o início, extremamente pessoal, 100% minha, por isso eu me dei ao luxo de algumas pequenas transgressões, como o uso de “corolário” sem saber o que significava.

A segunda coisa vai além da tese. A vida inteira eu escrevi publicamente, e sempre ouvi das pessoas que eu escrevia bem. Eu gosto mesmo de escrever! (Por isso tenho este site). Mas gostar de fazer alguma coisa e fazer bem feito não andam necessariamente juntas: eu gosto (estou parado há bastante tempo, mas talvez retome em breve) muito de jogar vídeo game, mas jogo muito mal, sou péssimo. Meu problema quando as pessoas diziam que eu escrevia bem não era por dificuldade de receber elogios, bem pelo contrário.

É que, há tempos, eu tenho uma concepção bem realista das coisas: eu sei coisas que eu faço bem, e as que eu não faço (como jogar vídeo game!). Então, se a pessoa acha que eu escrevo bem porque gosta do meu estilo, ok. É o meu jeitode escrever que a agrada. Só que a minha maneira de escrever não agrada acadêmicos (o que é uma fria para mim né!). Geralmente, eles acham a minha escrita “forte demais”, até “agressiva” para suas sensibilidades, que “tira do lugar quem lê”, o que eu sempre achei ótimo, pois não quero, como já afirmei, ficar numa punheta intelectual que não leva a lugar nenhum. O objetivo da ciência não é nos mover? Como disse Roger Waters, é estar nas trincheiras. Ainda mais, como foi o meu caso, em uma pesquisa psicanalítica: como escreveu o professor Luís Cláudio Figueiredo, parte-se para um corpo-a-corpo com o objeto de pesquisa de forma que nada saia desse processo do jeito que entrou. Nessa perspectiva, que é a que compartilho, minha escrita (e também minhas concepções), está plenamente adequada. Porém, estranhamente, muitos dos elogios que eu recebi pela minha escrita não eram pelo estilo, eram pelo bom português mesmo. E aí temos vários problemas.

Você não vai fazer, eu entendo, mas leia meus textos, aqui do site mesmo, e procure pelas crases. Quase todas eu as uso no instinto, ou seja, onde eu acho que vai ou não vai. Foi uma regra que eu nunca consegui aprender, exceto que a crase é antes de palavra feminina. (Isso sem falar nos erros de concordância, que eu começo a falar numa pessoa e termino em outra, depois de passar por diversas!). Quer dizer, só existem duas possibilidades: ou a pessoa que elogia o meu português não entende da nossa língua, ou eu desafiei (e venci!) as probabilidades, e acertei todos os meus chutes! Qual você acha mais provável?

Por tudo isso, e confiando nessas minhas teorias, eu pensei em duas razões que me permitiram usar “corolário” na minha tese. A primeira, é que eu realmente não acreditava que alguém chegaria até aquele ponto de leitura; ao menos, com certeza não com uma leitura atenta. Entenda: o uso, como já disse, foi bem para o fim, 200 ou 300 páginas (dependendo da versão – sim, há mais de uma versão...) depois do início. A segunda razão é o que falei acima: mesmo que alguém fizesse uma leitura completa e atenta, não iria perceber o uso aleatório da palavra, porque também não sabe escrever! Eu leio artigos em revistas acadêmicas com erros bizarros de português, você não lê também? Podem até saberem de psicanálise, mas não sabem nada de português no sentido de poder julgar um texto pela sua gramática, pois não é sua área de estudo. Gostar e escrever muito não nos torna especialistas nesta arte. Não somos Machado de Assis, né!

Você sabe (e se não sabe, saiba agora) que eu brinco bastante, ao mesmo tempo que falo sério. Obviamente, eu não estou celebrando que se escreva coisas sem saber o que é (já temos isso demais hoje em dia!). Eu mesmo, para uma simples crônica que escrevo aqui, que tem esse caráter de liberdade (e que meia dúzia, você uma delas, lê), reviso e confiro muitas vezes. Eu sou muito cuidadoso e exigente com o que escrevo, sempre fui porque é sempre muito pessoal(por isso é verdade o que tem escrito na minha descrição aqui no site: que você pode me conhecer lendo meus textos). Saber, de fato, português é outra coisa. Eu só estou afirmando que muita gente escreve chique e errado na norma culta, e não por “piada” como eu fiz, mas porque não sabe escrever corretamente mesmo! Assim como eu! É por isso que eu recebo elogios! É o que não sabe elogiando o que não sabe por algo que ambos não sabem. Que valor tem isso? É outra coisa se o elogio é pelo estilo, “gosto do teu jeito de escrever”, aí é maravilha.

Eu ouvi que Luís Fernando Veríssimo escreveu um texto usando só esse tipo de palavra que estou abordando aqui, dando para elas o significado que ele achava que elas tinham. Nunca li (e acabei nunca procurando para saber se era verdade). Mas eu achei a ideia maravilhosa. Claro, com toda a certeza ele conhecia o significado das palavras, foi só um uso da sua genialidade. Meu caso é diferente: é por ignorância mesmo.

Eu gosto de jogos e invenções com a língua, tipo James Joyce fazia (e Lacan também, tanto que fez seu seminário 23 sobre o escritor irlandês – indico, é muito bom!). Mas nesses casos há método. Mesmo que o meu corolário tenha sido de caso pensado, não há, de fato, um método, foi mais uma provocação mesmo, um easter egg (algo humorístico escondido) condenado a não ser descoberto. Ainda assim, eu acredito que possamos usar e torcer as palavras a nosso favor criativamente, sem ficar preso a norma culta, ainda que se tenha de ter esse conhecimento para poder brincar com as palavras. Torção como o professor Roberto Machado falava sobre o uso que Deleuze fazia dos conceitos alheios; brincar no sentido e importância que Winnicott traz; criar o que Thomas Ogden fala que se faz ao escrever: não registrando a vida, mas criando a vida.

Esta crônica é o corolário de muita coisa que já escrevi aqui. E tantas outras ainda.

 

 

Abril, 2024... – Abril, 2025.







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