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Foto do escritorJuliano Corrêa

Cavalo encilhado


Há um dito, acho que é gaúcho, que diz assim: “um cavalo encilhado não passa duas vezes”. O que isso quer significa? Bom, se você não é daqui do sul (bem do sul), pode estar se perguntando: “mas que porra é essa de encilhado???”. Aí, eu, um ignorante da cultura gauchesca, explico: encilhar é colocar a cinta no cavalo para poder cavalgar ou levar alguma carga. Se você, por azar meu, é um riograndense raiz e está de olhos arregalados pelo o que eu acabei de escrever, calma, por favor. Esta crônica não é sobre cavalos ou nada do tipo. Estou só usando o dito. O que eu falei não está certo tecnicamente, imagino, mas a ideia e essa... É o que me basta.

Cavalo encilhado é um cavalo que está pronto, no ponto. Não é? Pois então, para além de questões técnicas do encilhamento, qual é o sentido deste ditado? É que (grandes) oportunidades, aquelas perfeitas, aparecem, e a gente tem de aproveitar, pois não surgirão novamente, ou seja, chance única! Monta no cavalo todo preparado que está passando agora, ou esquece! Nunca mais! Perdeu a chance, outra pessoa a desfrutará. Grandes oportunidades não surgem o tempo todo, são raras. Será que é mesmo assim?

Bom, por essa pergunta você já deve ter a ideia de que eu acho que não né. Como com quase todo o dito, eu acho uma tremenda besteira! Não tem nada a ver! Essa minha opinião se estabeleceu não faz tanto, mas as sementes já estavam plantadas há tempos.

Quando ficou acertado que eu seria contratado como professor da UNOESC, lá no oeste de Santa Catarina, na cidade de São Miguel do Oeste, que eu nunca tinha ouvido falar, eu fiquei muito feliz: estava procurando por esta vaga e, secundariamente, mas com grande importância, queria sair de Porto Alegre (não por não gostar da cidade, mas eu achava que tinha de ir para outro lugar). Foi bem no fim do ano (2006...), e no início do ano seguinte tinha a festa da instituição psicanalítica da qual eu fazia parte, onde fiz minha formação (festas boas pra caralho, diga-se de passagem). Ali, eu anunciei para várias pessoas que eu estava indo embora; como sabiam que eu estava desejando por isso (e quem não sabia, eu contava!), todas ficavam muito felizes por mim. Houve apenas uma exceção: um analista com quem eu havia estudado num grupo bem peculiar, sempre muito querido comigo (e que, infelizmente, morreu há poucos anos...). Quando contei da minha nova empreitada, ele não ficou nem um pouco feliz, instantaneamente começou a expressar sua desaprovação, achando um absurdo eu estar indo embora. (Depois, eu me dei conta que ele foi o único que realmente expressou que iria sentir a minha falta! Além, claro, da opinião dele de que eu deveria continuar em Porto Alegre). Eu fiquei meio constrangido e surpreso, tentei explicar da minha oportunidade, etc.; de nada adiantou, ele continuou achando inadmissível tudo aquilo. Então, eu falei o que outra analista havia me dito quando contei da história: “como a fulana me disse, o cavalo encilhado passa uma vez só né, então a gente tem que aproveitar”. Novamente, ele continuou maneando a cabeça negativamente e disse: “isso é uma besteira! Cavalo encilhado tá passando o tempo todo, a gente que não vê”. Enfim, a conversa não terminou muito feliz (foi a última que tive com ele), pois não teve, de maneira alguma, a sua concordância, mas eu fiquei desde então pensando na sua resposta. Talvez tenha sido a última lição que ele me ensinou.

Hoje, de forma muito mais clara e até teórica também, eu concordo plenamente: ele estava certo. Não que eu não devesse ter ido para São Miguel do Oeste, não sei, eu nunca me arrependi. São escolhas: se eu, por qualquer motivo, não tivesse ido, a minha vida hoje estaria completamente diferente. Melhor? Pior? Nunca saberemos, mas isso não deixa de ter grande relevância. Acredito que isso tenha um grande valor psíquico, para o tratamento psicanalítico das nossas loucuras diárias. Que seja: eu fui e morei por dez anos lá, tendo todas as experiências acadêmicas (e tantas outras pessoais) e, como já disse, não me arrependo, eu quis mesmo ir.

Agora, vejamos o tal do cavalo. Em primeiro lugar, o encilhamento: não será uma dose de fantasia e romantização que fazemos pensar que o cavalo passa encilhado? Quer dizer, que a oportunidade é a perfeita, tudo exatamente o que queríamos e precisamente na hora certa? Como eu acho que tudo é possível, pode até ser que existam experiências assim, mas eu penso que devem ser irrelevantes dada a sua raridade. Em segundo lugar, vem a minha concordância com meu saudoso professor. Ainda que não seja o mesmo, o tal cavalo, que duvido que seja tão encilhado quanto dizem, está passando o tempo todo mesmo.

Estamos falando do acaso, e isso, por confuso que possa ser, talvez esclareça. Tem outro ditado, que eu uso bastante por ser dos únicos que conheço que faz total sentido, que tem algum valor: “depois que a onça está morta, todo mundo é caçador”. Isto é, é muito fácil traçar trajetos, ou mesmo idealizações, após o evento, atribuir lógica ou heroísmo posteriormente, sem que ela estivesse lá na origem. Vemos nossa vida, e tudo vai se encaixando para as coisas que aconteceram, mas há uma grande diferença se entendemos o destino como o que estava escrito, ou como o que se consumou dentre tantas outras alternativas. É gigantesca a discrepância entre encontrar uma causa oculta que já existia, e conferir causas inexistentes previamente só para saciar nossa necessidade lógica. A possiblidade era perfeita mesmo ou só se tornou assim depois de a termos aproveitado (ou a perdido)? Quando algo é “previsto” em retrospectiva, é porque algum valor foi atribuído depois; não será ilusão imaginar sempre que ele estava lá desde o início?

Nós estamos falando de uma questão de temporalidade, tão fundamental para se discutir sobre o acaso (e, independentemente de qualquer coisa, tão importante para a psicanálise também). Nesse sentido, a figura mitológica grega que se configura a perfeita é Kairós. Diferentemente de Chronos, relacionado ao tempo quantitativo e linear, Kairós se refere ao tempo qualitativo e indeterminado. É o tempo fugitivo, não representava o passado ou o futuro, mas o melhor momento presente, a essência do que se obtém do tempo, o tempo do instante presente oportuno para que algo acontecesse, algo pelo qual deveríamos nos responsabilizar sobre. Diz-se que Kairós andava nu, era muito veloz e somente era possível o agarrar pelo único cacho de cabelos que exibia na testa; caso contrário, seria impossível de o trazer de volta, ou mesmo o seguir. Tem de se pegar Kairós pelo seu cacho de cabelos quando ele passar!

O que mais interessa para nós agora é que, ao contrário do cavalo encilhado, Kairós não passa apenas uma vez: está sempre correndo, sempre passando, talvez sua velocidade (que o tornaria quase imperceptível, um tipo de The Flash!) o faz difícil de capturar. Mas também penso que sua captura não é no sentido planejado da palavra, e sim no encontro que pode ocorrer. É algo natural.

É claro que a oportunidade de Kairós não é sempre a mesma; ela é, sim, única. Os eventos são irreptíveis; perdeu, já era, não volta mais. Essa é a beleza, e também a tragédia, dessa concepção. Entretanto, o que eu estou frisando é que existem várias únicas chances! As oportunidades são únicas sim, mas não são as únicas oportunidades, entende? Não há “aquela” especial: todas são potencialmente especiais até que você segure o pequeno cacho de cabelos! Vamos fazer um pequeno exercício. Pense em uma situação da sua vida. Nem precisa, veja bem, ser uma situação de encruzilhada, não precisa ser importante, pode ser comum, do dia a dia. Ou seja, uma escolha qualquer. Pense comigo assim: e se você tivesse escolhido isso ao invés daquilo? O que teria sido?[1] O que eu estou falando nem é de uma escolha no sentido literal da palavra, não é consciente e ponderada, somente é feita. Ou seja, o acaso é um elemento essencial que guia sem o menor objetivo essas escolhas que muito melhor seriam chamadas de encontros. Nós encontramos as oportunidades, pessoas, seja o que for. E não porque estamos procurando, mas porque acontece. Simples assim.

Essa ideia (contra a noção do cavalo encilhado) pode ter duas consequências pelo menos, e paradoxais: ao mesmo tempo que nos livra do peso de perder uma oportunidade para sempre, coloca-nos a responsabilidade de fazer uso das várias possibilidades que estão pipocando na nossa frente. Só que não é uma responsabilidade de obrigação, e mais, se quisermos chamar assim, de aproveitamento: de aproveitar o instante do encontro, fazer algo dele. Dessa forma, pode haver perda quando deixamos passar, mas é uma perda probabilística: não sabemos o que seria, pode até ser um ganho ter perdido! Recentemente, eu escrevi sobre não ter aproveitado o Nirvana quando eles estavam acontecendo, tendo os descoberto muito tempo depois.[2] Foi uma perda? Eu realmente não sei. O que eu sei é que isso faz diferença.

Não sabemos “dos Kairós” que passaram/passam por nós, e nem percebemos. Será? Existe uma interpretação da mecânica quântica, a de muitos mundos (que não é a mais popular), que sugere a existência de universos paralelos: ao fazermos tal escolha, abre-se outro universo no qual fizemos outra escolha e onde tudo está diferente. Como isso acontece constantemente, um número infinito de universos vai se criando, e eles se desenvolvem paralelamente ao que estamos vivendo. Também há a ideia de que esses universos podem “se tocar” levemente por vezes, ocorrer uma pequena mistura, um vislumbre. Dessa forma, nossas “escolhas não feitas” teriam influência objetiva em nossas vidas? Isso faria o que poderia ter sido tão importante ou mais do que o que foi. Mas aí já é outra conversa (e que teremos ainda, muito!).

O não encontrado foi perdido para sempre (ao menos, neste universo....), mas há uma sucessão de “cavalos encilhados”, se ainda quisermos chamar assim, passando o tempo todo.

 

 

Junho – Outubro, 2024.



[1] Há vários exemplos de filmes que mostram este “e se?”, como uma cena de “O curioso caso de Benjamin Button” e, principalmente, o maravilhoso filme alemão de 1998 “Corra, Lola, Corra”.





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