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Foto do escritorJuliano Corrêa

As roubadas


Não faz muito tempo, eu discuti com uma pessoa muito especial sobre as roubadas que nos metemos na vida. Fizemos uma troca de experiências: ela me contando as suas; eu, as minhas. Isso me fez pensar, como sempre me faz com ela, e me trouxe lembranças.

Eu estava na primeira metade da faculdade de psicologia quando uma professora, numa aula de psicanálise, começou a dizer sobre situações terríveis nas quais as pessoas se metiam propositalmente, mas de forma inconsciente, claro. Ela estava falando sobre o instinto de morte e a compulsão à repetição, dois conceitos tão importantes e que se interligam na psicanálise, apresentados em toda a sua potência no maravilhoso texto de Freud “Além do princípio de prazer”. Mas eu só fui ter esse entendimento muito após, como analista e, principalmente, na minha própria análise: nossa, o que ela falava era muito verdade!

Naquele momento, sem a compreensão, eu, de certa forma, rebelei-me. Questionei como a pessoa poderia saber por antecedência que estava se metendo em uma roubada. Com a maior tranquilidade, ela me explicou que sim, isso acontecia. Não aceitei e me exaltei indo contra sua exposição; ela manteve a mesma calma e a mesma resposta. Quase se podia ver, pensei nisso tempos depois, um sorrisinho maroto na professora como quem diz: espere, você vai saber. Sim, eu soube. Isso é questão de psicanálise para cursinho de idiotas né: é claro que eu me opus porque estavam falando de mim, eu estava defendendo não um ponto de vista, mas a mim mesmo! Talvez já ali eu soubesse, bem lá no fundo, que a minha professora estava a falando a verdade... sobre mim! Tanto que eu desisti do debate ao me dar conta que minhas colegas estavam todas me olhando estranho.... tipo: “ele tem problemas”. Era como se eu estivesse dizendo: “que culpa tenho eu das roubadas que me meto?”.

Mas que estranho isso né! Como que alguém, em sã consciência, pode ter, digamos, uma fixação em se meter em roubadas? “Isso é masoquismo!”, alguém que leu rapidamente um comentador de Freud pode gritar. É, justo, mas não é. Não se trata disso (e masoquismo mesmo é uma coisa bem diferente...). Efetivamente, pode existir em nós essa tendência para o desastre, um tipo de prazer nisso (daí a gente ficar chamando de “masoquismo”). É estranho falar em prazer né? Mas temos de ter em mente que na psicanálise prazer não é só as coisas boas que podem acontecer, é também o que é ruim no seu resultado (consciente), mas provoca certo alívio de tensão intrapsíquico. Mas aqui eu já fiquei muito teórico, e não é este o objetivo agora.

Fato é que podemos sim sermos atraídos para coisas ruins. Como aquela piada (que eu aprendi sendo com um português, o que é uma besteira) da pessoa que está caminhando, vê uma casca de banana no chão e diz, bem antes de escorregar e cair: “lá vou eu de novo”. Não é algo que temos consciência que fazemos, aí colocamos a culpa em fatores externos que geralmente são muito frágeis, tipo o universo estar contra mim, inferno astral, esse tipo de coisa. Não é. Somos nós mesmos fazendo contra nós! Que loucura né?

A explicação da minha professora da faculdade se mantém: a compulsão à repetição do instinto de morte é altamente potente, algo que nos prende sem percebermos que estamos presos. Isso é importante porque, muitas vezes, quem fica recorrentemente se metendo em roubadas passa por fingida, a que “gosta de sofrer” e, certamente, fica extremamente chata para os amigos que tem de ficar sempre ouvindo a mesma história na qual só mudam os cenários e os participantes. Não é nada disso (tirando a parte do ficar chato, pois se fica mesmo!), há uma verdadeira atração para o desastre.

E aí? Essa é a grande pergunta: o que fazer? Claro que eu não vou dar uma resposta objetiva e/ou universal para esta questão, seria uma canalhice. Eu sei que é chato isso (principalmente para quem está começando a estudar psicanálise), mas nós lidamos com casos únicos, sempre. Ou seja, que entremos todos em roubadas, mas o meu entrar na roubada é único, diferente da sua maneira de se foder na vida, logo, o que pode servir para mim, não vai servir para você. Porém, há uma coisa que eu acho viável discutir, pois me parece ter um caráter mais abrangente.

É muito interessante como a psicanálise, apesar de ter sua origem conectada com disciplinas como a medicina, inseriu um rompimento de várias formas. Podemos olhar para um exemplo simples: a gripe. O vírus da gripe é algo esquisito no meu organismo, tanto que ele reage, por isso temos febre e outras coisas. O objetivo é extirpar este corpo estranho, aí eu fico bem. Já no nosso caso, não fazemos assim. Grosseiramente falando, vamos retirar o instinto de morte/compulsão à repetição da pessoa? Mesmo que fosse possível, e não é, não deveria ser feito. Se você, por exemplo, cai andando de bicicleta e machuca o braço, a solução é amputar? Não né! O braço é teu! Ele pode até não ter mais a funcionalidade perfeita que tinha antes, mas vamos manter o braço, não é? Eu acredito que quando falamos do psiquismo é a mesma coisa. Por isso Freud disse uma vez (em uma entrevista, 1929 se não me engano) que os nossos complexos são a fonte da nossa fraqueza, mas, ao mesmo tempo, também podem o ser da nossa força. Por esse motivo que muita gente não entende como, por exemplo, uma pessoa obsessiva se analisa por anos e termina sua análise ainda obsessiva. Talvez a questão não seja sua obsessividade em si, mas como ela é. Afinal, ao invés sofrer (a pessoa e os que a rodeiam) com rituais obsessivos, poder, digamos, ter um emprego no qual a obsessividade seja até necessária, onde, provavelmente, essa pessoa será melhor do que quase todos e ainda terá muito prazer no que faz, é uma grande diferença, não acha?

Desta forma, é a aceitação desse algo que sentimos estranho (toda a manifestação do inconsciente é assim), mas que é muito nosso, que pode fazer a diferença. E por “aceitação”, não estou dizendo de algo passivo e derrotista, acho até que é bem pelo contrário. Seria, ainda que isso possa soar filosofia barata, fazer da sua fraqueza a sua força, como Freud mesmo disse, e eu continuo acreditando nisso. Quando nosso sintoma, a roubada aqui no caso, deixa de ser estranho a nós, parece perder muito de sua força danosa também: passamos a ter mais “controle” sobre ele, e aí podemos usar a nosso favor. Se a pessoa, por ventura, tiver a possibilidade de usar mecanismos mais “nobres” como a sublimação, aí é uma maravilha!

Eu já falei em várias crônicas aqui daquela ideia mais winnicottiana dos maiores objetivos de uma análise, de a pessoa poder encontrar o seu lugar no mundo sendo mais verdadeiramente si mesma. Logo, como que extinguir as roubadas, no caso, este algo tão íntimo e verdadeiro, vai se encaixar no “ser quem se é”? Não dá né! Agora, com certeza a gente muda, talvez isso seja o mais essencial, podemos inserir coisas novas, mas não acredito que possamos (e nem acho saudável) eliminar partes essenciais do que somos.

Então, você que “perde tempo” me lendo: não brigue com suas roubadas repetidas (deixe para seus amigos, eles têm razão para isso!), una-se a elas, será muito mais proveitoso (ainda que para isso você vá precisar de alguns aninhos de análise). Quem disse que, eventualmente, uma roubada não pode dar em algo maravilhoso?

 

 

Dezembro, 2023.




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