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Foto do escritorJuliano Corrêa

A volta de Janis Joplin


Janis Joplin nasceu e cresceu numa cidadezinha do Texas, nos Estados Unidos, chamada Port Arthur, que tinha (e se mantém assim) uma média de quase 60 mil habitantes. Janis Joplin, se você não lembra, foi uma das maiores artistas que já existiu, dona de uma voz incomparável, de uma potência e emoção inigualáveis, e símbolo de toda uma geração. Faz parte daquele mórbido “grupo dos 27”: grandes talentos que morreram com 27 anos, como Jimi Hendrix, Jim Morrison, Brian Jones, Kurt Cobain (parece que foi a partir dele que essa ideia popularizou mais), chegando até Amy Winehouse mais recentemente. Janis morreu de overdose de uma heroína “superconcentrada” que circulou naquela noite em Los Angeles: houve outras mortes na mesma noite de pessoas que compraram do mesmo traficante. Ela estava numa fase mais “feliz” e “esperançosa”, mas tinha ficado insegura quanto ao seu noivo da época, resolveu, como de costume, ter um alívio da pressão na droga. Perdemos todos nós.

Ela era excêntrica, maluca, todos esses adjetivos que gostamos de dar para pessoas assim, mas (e é interessante esse “mas”, como se fosse algo inesperado ou atenuante) de um talento sem igual. Ela também era doce, sensível, intensa. Eu nem acho que seja necessário ler sobre sua vida para saber disso, basta escutar suas músicas, falam por si: está tudo na voz dela. Uma vez eu li, não faço ideia onde, que ela tinha orgasmos de verdade no palco enquanto cantava. Não sei se é real (e nem me importo), mas faz sentido: é visceral, é verdadeiro o que ela canta, por isso que emociona. Ela era uma força da natureza. Sua voz rouca e rasgada rasga a nossa alma.

Em junho de 1970 (quatro meses antes da sua morte), ela participou do famoso talk show de Dick Cavett. Ali, quando perguntada se ela era popular na escola, revelou que estava indo para uma reunião de anos de formados de sua turma do colégio. Ela disse que era piada para seus colegas na classe, na cidade e no estado! (Na época, ela teria sido eleita como “o homem mais feio do campus”). Aí, ela completa: “é por isso que eu estou voltando para casa”. Triunfante! (E ela é tão bonitinha fazendo isso... ao mesmo tempo, tão triste – pelo que já vou explicar). Essa é a ideia daquela menina doce com plumas na cabeça, roupas coloridas, riso fácil, inocente, envergonhado por vezes, e gostoso. Qual ideia é esta?

Ora, é tipo assim: “vocês me ridicularizavam por eu ser diferente, gorda, ter espinhas; pois agora eu sou famosa, admirada, canto para plateias, sou entrevistada em programas de televisão, vou esfregar isso na cara de vocês!”. Além de um tipo de vingança indireta, claro que também tinha o desejo de ser reconhecida pelos seus de origem, colegas e familiares (estes últimos também a tinham renegado pelas suas escolhas).

A volta de Janis Joplin foi um desastre: tente pensar na cultura e mentalidade da sua pequena cidade natal. O que aconteceu foi que, apesar de renomada e celebrada, para eles, ela continuava a mesma esquisita (talvez até mais!), sem seu lugar, de sempre. Ela ficou, obviamente, bem deprimida com isso. Não é surpresa que esse plano foi uma tragédia, né. Por que? Porque simplesmente é impossível voltar!

Eu escrevi uma crônica sobre o voltar, no caso, (a impossibilidade de) voltar para um lugar que se amou.[1] Nesta situação, ainda que se mantenha o mesmo princípio, é completamente diferente: Janis Joplin não tentava voltar para o “lugar que amou”, que foi feliz e queria reviver os bons tempos. Não! Ela queria voltar para o que ela não teve, para o que poderia ter tido (deveria, talvez). Eu acho que ela estava, apesar de toda a fama e aclamação que tinha, desesperadamente atrás de pertencimento, de um reconhecimento diferente, mais “interno”, que dissesse, de fato, qual era seu lugar no mundo, quem ela era na vida.

A música que coloquei de trilha sonora desta crônica (vou a deixar no fim) não pode ser melhor para expressar o que eu sinto disso que estou escrevendo, também sobre ela (acho que não é por acaso que ela dá uma interpretação tão arrepiante): “uma mulher deixada sozinha, logo vai cansar de esperar; ela fará coisas loucas em ocasiões solitárias”, “ela sabe que ele [seu homem] não lhe dá valor; querido, ela não entende”, “as febres da noite, elas queimam uma mulher não amada”. Janis Joplin se sentia sozinha. Em todos os sentidos. Não só romanticamente, mas em níveis bem mais profundos, eu suponho. Não são as noções de Winnicott da capacidade de estar só ou da solidão essencial que já falei em outra crônica[2], mas, como o mesmo Winnicott diz em um de seus maiores escritos, ser isolado sem ser insulado.[3]Janis Joplin parecia estar querendo sair de sua ilha sem nunca ter pertencido a ela, e nem ter ficado isolada (protegida).

  Ela teria dito que fazia amor com 25 mil pessoas no palco enquanto cantava, mas depois ia pra casa sozinha (triste isso né!). Eu não quero fazer (ainda que já tenha começado) uma interpretação de Janis Joplin. Eu não gosto nem um pouco desse tipo de análise de obras/autores que tanto se faz na psicanálise. Tudo o que estou falando pode ser uma grande besteira em relação a ela; é o uso da situação que me interessa para algo além.

Eu a vejo (e aí, como combinado, pode ser ela ou qualquer outra pessoa – eu ou você?) à deriva, por isso querendo voltar. Mas veja bem, isso é importante: não voltar para o que foi, pois o que foi era uma bosta, melhor ainda, não existia o que foi, mas sim voltar para o que poderia ter sido. É uma tentativa de volta para o que não existiu na realidade (talvez, só virtualmente). É o tempo do futuro do pretérito composto, como já venho expondo,[4] não por ser mais interessante, mas porque eu acredito que é o mais importante no tratamento psicanalítico. Não é o que muitas pessoas fazem em suas análises, querer voltar para o que poderia ter sido para ser alguém de fato, para ter pertencimento, descobrir, ou talvez mais ainda, criar seu lugar no mundo?

É que eu concebo como uma mudança de visão, que pode parecer supérflua, mas é marcante (e bem mais profunda, será tratada devidamente em textos psicanalíticos que ainda vou publicar). É assim: o futuro, ainda que nem sempre destacado, eu quero acreditar que sempre foi objetivo crucial da psicanálise, afinal, a pessoa vai se tratar para viver melhor, ou seja, para o seu futuro. Que estejamos de acordo nisso. O problema talvez seja (ainda) maior nos outros tempos. O foco (maior) não seria o passado, sem negar, de forma alguma, sua importância, está sempre aqui conosco, mas justamente o futuro do pretérito composto. Há uma diferença: o passado é real e já foi (por mais distorções que façamos dele); já o futuro do pretérito composto é virtual, ele não foi, poderia ter sido. Não é, isso é um ponto principal, fantasia! Faz parte da realidade, só é virtual, não aconteceu ou, se formos usar a linguagem da terminologia que ainda uso (que é de Deleuze), não se atualizou, não é o oposto do real. (Eu nem estou considerando o uso/importância do presente, pois uma psicoterapia que não se ocupa do presente não tem absolutamente valor algum!). Assim, nosso tratamento psicanalítico tem uma mudança não só de foco, mas também de postura e de epistemologia, trata-se sobre como se concebe a psicanálise, obviamente, mas também da questão temporal tão essencial que guia este caminho, como já escrevi em outra crônica.[5]

Talvez a atrapalhação de Janis Joplin, mas não só dela, de todos nós (a gente tem uma tendência para isso mesmo) tenha sido querer resolver o que poderia ter sido de forma concreta. Buscar o que poderia ter sido no lugar onde poderia ter sido, quer dizer um lugar nenhum. É claro que não será! É impossível, pois não existe na realidade, o caminho tem de ser outro. Se ela (ou eu, você) tivesse buscado de outra maneira, fazendo um tratamento psicanalítico (olha eu querendo colocar Janis Joplin em terapia... veja a que ponto chegamos), isso talvez pudesse ser feito. Por quê? Porque aí não teria sido de ela voltar realmente para “consertar” sua história com as pessoas reais que de fato não ofereceram o que ela queria/precisava/desejava. Não, seria uma “volta” mais simbólica, uma vez que virtual. Pense comigo: a busca pelo futuro do pretérito composto é virtual, não foi realidade, então, buscar no real é totalmente infrutífero. Isso que estou falando é uma regra meio básica da psicanálise, que Freud ensinou há 100 anos, quando deixou claro que questões do inconsciente devem ser tratadas pelo inconsciente (do analista), não adianta ir pelo consciente, não se conseguirá abordar algo emocional pela via intelectual, são universos diferentes.

Voltar para a sua cidade de origem sempre pode ter várias emoções guardadas.[6] Voltar para alguma parte da nossa mente, também. Questão é como se volta. Não é propaganda gratuita de análise (por favor né! Já tem tanta gente fazendo isso com tão menos...), mas só a ideia de volta diferente que poderia acontecer. Cada um na sua! Cada um escolhe o que quer viver (e voltar – e como!). Se pensarmos na nossa Janis Joplin (ela não se tornou íntima de nós cantando daquele jeito?), podemos lembrar da frase da canção que embala esta crônica: “oh, aquela menina solitária”. Ela era assim. Nós, eu e você, somos também?

 

 

Julho, 2024.




Esta é a entrevista na qual ela fala da volta. Só encontrei sem legendas... Mas mesmo que você não entenda inglês, as imagens já dizem por si (é aos 2m15s que ela conta a história que inspirou esta crônica). Tão querida, bonitinha... e triste, se soubemos do desfecho...


Esta é a música que falei no texto e que botei de trilha (foi até meio difícil de escolher, pois são tantas maravilhosas dela...), “A Woman Left Lonely”. Na verdade, a minha dica para você, se é que eu posso dar dicas, é que você escute todas as músicas dela. Vai lhe fazer bem e estar vivo.





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