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Foto do escritorJuliano Corrêa

A espera


“Estou apaixonado? – Sim, pois espero. O outro não espera nunca. Às vezes quero representar aquele que não espera: tento me ocupar em outro lugar, chego atrasado; mas neste jogo perco sempre: o que quer que eu faça, acabo sempre sem ter o que fazer, pontual, até mesmo adiantado. A identidade fatal do enamoramento não é outra senão: sou aquele que espera”.

(Foi assim que eu comecei este texto, “A espera”, publicado em 2006 (veja só...) no Boletim Informativo do CEP (onde fiz minha formação psicanalítica), de circulação apenas interna para os membros da instituição, para o qual eu escrevia incessantemente. Dos textos que foram expostos lá, tenho muito orgulho, mas não vejo tanta conexão comigo atualmente; este parece ser diferente: sempre me deu a sensação de continuar, ao menos em parte, atual para mim. Publicá-lo novamente aqui não faria sentido; porém, como é meu, resolvi usar o mote e boa parte do que já estava escrito lá para incrementar com meu pensamento de hoje. Talvez reescrever? Afinal, eu tenho o direito de perverter meu próprio texto! É como uma viagem no tempo).

Leio este belo trecho de Roland Barthes acima, do seu livro “Fragmentos de um discurso amoroso”, e me lembro dos momentos em que estou sozinho em meu consultório já no horário de um paciente que não vem à sessão. Estou a esperar. Só que o tipo de espera sobre a qual estou escrevendo não é passiva, morna; é a espera apaixonada, produtiva e viva. Nesta situação, estou frustrado pelo fato de o meu paciente não estar presente, mas a sessão está acontecendo, estou produzindo, estou vivenciando esta ausência, dos jeitos mais inesperados, e de maneira quase agressiva que marca uma presença muito forte. Estou envolto de mistério sobre o que realmente está acontecendo, conectado com este analisando aparentemente distante. Estou a esperar. Porém, a espera é apaixonada não apenas por ser ativa, mas porque é uma espera em algo que eu acredito, em um encontro que logo acontecerá, que está acontecendo, e do qual não se pode quebrar a conexão. É isso que experenciamos (ou deveríamos) quando a pessoa falta (e também é por isso que o horário é cobrado!).

Certamente, o que acabo de escrever é uma situação comum. Mas é justamente do comum que podemos tirar algo extraordinário.

A psicanálise consiste em uma espera. Como assim? Mesmo que o paciente não falte às sessões, a espera é necessária. Winnicott aponta a importância de esperar pelo paciente chegar criativamente à solução de seu problema, o quanto infrutífero é nos adiantarmos para oferecer respostas (até por não as termos!). De forma mais geral, o que Winnicott coloca (ou melhor, deixa as portas abertas para alguém como eu colocar) é que a relação com o analisando, para que possamos vivenciar juntos, necessita uma espera, pois este vínculo é algo que se dá nos pequenos detalhes, por vias que são imperceptíveis, ligações que não sabemos previamente onde ou quando ocorrem. Pode ser o lugar do acaso.

Um lugar (tempo) aonde se comece a fazer alguma diferença, onde algo poderá se conectar. No belíssimo diálogo (o livro todo é, né!) da raposa com o principezinho na obra de Saint-Exupéry, no qual ela pede para ser cativada, explicando-lhe que isso significa “criar laços”, e que eles seriam únicos um para o outro no mundo, pois faria seus dias diferentes, ela teria a lembrança do principezinho por causa da semelhança dos cabelos dele com os campos de trigo, ela dá aula! Questionada sobre o que seria necessário para ser cativada, ela diz: “é preciso ser paciente. Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, cada dia, te sentarás mais perto...”. Ela até o repreende por não voltar sempre no mesmo horário, pois é necessário ter ritos, o que faz com que uma hora seja diferente das outras. (Há muito que eu vejo nesse livro que serve para o que eu penso da psicanálise, com o tempo, veremos outras coisas).

Só que nós podemos tirar ainda mais um pouco disso, pois o que acabei de escrever não é, como pode parecer, universal. A conexão do analista com seu analisando até é, mas a maneira que isso ocorre, não. Há um artigo de Jô Gondar[1] no qual ela fala sobre uma diferença na concepção de tempo entre a escola francesa de psicanálise (liderada por Lacan), e a escola inglesa (com foco em Winnicott) – ela também aborda o filósofo francês Henri Bergson e sua noção de duração, que é interessantíssima, e ficaria relacionada com o psicanalista inglês, mas eu vou pular esta parte. Então, a vertente francesa estaria marcada pela “pressa”, uma noção do tempo como descontínuo, a sessão sofre um corte com efeito de interpretação; já na perspectiva inglesa, há uma ênfase à continuidade temporal, a ideia da experiência de continuar a ser, perseguida pelo paciente através do suporte recebido do analista/ambiente facilitador, daí a posição de uma “espera” (para a interpretação, conexão, etc.). Essas posições são amplamente amparadas nas teorias dos autores principais, no tipo de suas experiências clínicas e até nas traduções escolhidas do termo do tempo em Freud para o inglês e para o francês! Tudo isso não é só muito interessante, mas muito importante, e teremos a oportunidade (e a necessidade) de analisar a fundo em vindouros textos psicanalíticos, na dimensão do tempo no desenvolvimento que proponho para estudar o acaso na psicanálise. Mas não é esse o ponto principal que quero destacar aqui. “Então, vá logo de uma vez para qual é o ponto!”. Calma, o mistério faz parte, e, como o título já entrega, eu me alinho com o olhar da espera.

É que, ao fim de seu artigo, Jô Gondar questiona se haveria necessidade de escolhermos entre modelos que nos guiam na clínica justamente em relação ao tempo, que impõe particularidades e multiplicidade, sugerindo a possibilidade de que a bússola para esta condução seja o tipo de paciente e seu determinado momento. Assumindo o melhor caminho para o objetivo da análise, de que o paciente se responsabilize pelo próprio desejo. É neste ponto, que é aonde quero chegar, que sou obrigado a discordar.

Eu entendo e concordo bastante com a ideia da nossa adaptação para cada tipo de e cada instante de um analisando (Winnicott mesmo dizia que não fazer isso é crueldade); porém, eu considero esta questão muito mais abrangente e crucial do que um ponto de vista ou maneira de compreender um fenômeno: eu vejo como a própria concepção que temos do que é a psicanálise e, consequentemente, do que se busca e como se faz em um tratamento psicanalítico. Afinal, como dito no parágrafo anterior, “responsabilizar-se pelo próprio desejo” é um princípio universal para uma análise? Não é né! É de uma certa ideologia psicanalítica (francesa, todos sabemos) que, ainda que se coloque como universal (e seja bastante dominante), não é inquestionável de forma alguma e não dita as regras de como as coisas são.

É o que debati em um texto psicanalítico, “Psicanálise ontológica e acaso – um prelúdio”,[2] sobre a concepção que temos, nós psicanalistas, sobre a psicanálise, e nisso o tempo tem um papel fundamental. Pensando assim, tratar o tempo de acordo com o que cada analisando precisaria estaria mais próximo daquele tipo de gente absurda (e canalha também né!) que diz que, em nome da “relação humana com quem se atende” (esse tipo de migalhice que se fala para torcida, para ver se arruma mais pacientes), usa psicanálise com uma pessoa, cognitivismo com outra, humanismo com uma terceira, e por aí vai. Ou seja, eu estou dizendo que a concepção temporal está muito além do que “cada um precisa”, está sim em nome do que a gente acredita do que é esta tal de psicanálise, logo, não se trata de “mudança de técnica”, mas do que se propõe como tratamento. Eu creio que têm pessoas que não se encaixam em um tratamento psicanalítico, tá ótimo, não há o menor problema; mas não é por isso que aí eu vou oferecer um tratamento comportamental, até porque não domino nada dessa técnica (ao contrário desses gênios da internet que dominam todos os tratamentos psicológicos existentes, afinal, não iriam oferecer algo no qual não são peritos, né?). Isto posto, a visão e, por consequência, o tratamento que se dá relativo ao tempo é intrínseco ao que se oferta, não pode ser simplesmente modificado de acordo com a situação, pois não há outra opção.

Há 17 anos atrás, eu encerrava este texto (ainda com outras coisas “da época” antes, talvez possam ter lugar em outro momento...) dizendo que eu escrevia como um iniciante, pois era assim que me sentia. Eu era, de fato, um novato! Mas mesmo hoje, não sendo mais um, cronologicamente falando, é claro que ainda me sinto verdadeiramente um principiante. Quem não é? Cada dupla analítica que se forma é iniciante, então, estamos constantemente estreando. Aí a necessidade da espera: para que eventos possam começar a ter lugar, o que só é possível através de um tipo especial de relação, para que possamos viver o apaixonamento (que é um ponto específico na transferência que eu idealizo). Esse caminho, que pode ser longo, é envolto de mistérios, mas não aqueles a serem desvendados (sem graça isso!), e sim os inventados entre nós, somente possíveis pelo apaixonamento: não apontam para o passado, mas para o futuro. É este quadro das coisas que permite e até exige o reconhecimento e a utilização (e a atualização) dos acasos que estão acontecendo o tempo todo. Nessa espera, vamos criando um lugar propício para tudo isso, correlato ao espaço (/tempo!) que Winnicott chamou de transicional. Um espaço/tempo, como o setting psicanalítico, de criação.

Como Milan Kundera disse no seu maravilhoso livro “A insustentável leveza do ser”: “é errado, portanto, censurar um romance que é fascinante por suas misteriosas coincidências (...), mas é certo censurar o homem que é cego a essas coincidências em sua vida diária. Pois sendo assim, ele priva sua vida de uma nova dimensão de beleza”.


(2006 –) Setembro, 2023.










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