A biblioteca
- Juliano Corrêa
- 21 de mar.
- 7 min de leitura

Eu sei que já falei disso.[1] No entanto, se é a primeira vez que você me lê, também é novo para você. Na verdade, toda a repetição é novidade, e o que nos apaixona acaba sempre nos trazendo de volta, pelo menos enquanto estiver apaixonando... No meu caso, esta paixão que vou falar não vai mais embora, já está muito bem estabelecida nas minhas entranhas.
Eu gosto de bibliotecas. Bastante! Na adolescência, ia, por vontade própria, pesquisar e alugar livros que me interessavam na do colégio onde estudei. (Eu ia acrescentar, por causa do que escrevi, que eu era um adolescente estranho, mas logo pensei: todo o adolescente é estranho! É inerente da fase. Então, eu era estranho com as minhas peculiaridades, como cada um têm as suas). A lembrança mais forte que tenho disso são das primeiras peças de Shakespeare que eu li de um livro de lá. Era um volume de obras completas no original em inglês (sim, eu era metido) com papel bíblia, aquelas folhas super fininhas, sabe? (eu não sabia que o nome era esse, tive de pesquisar). Hoje, eu já tenho o meu livro das obras completas de Shakespeare, que ganhei de presente (aliás, ótimo presente a se dar!), mas aquele lá da biblioteca do colégio era bem mais bonito. Eu levava aquele livro para casa como se fosse um tesouro, e aí que está: de fato era! Você vai entender isso daqui a pouco.
Confesso que eu não tenho, já há algum tempo, mais tanto interesse assim por bibliotecas públicas; porém, foi só uma mudança de lugar do entusiasmo: foi do público para o privado.
Quando eu vou na casa de alguém, por mais coisas legais, diferentes (ou bizarras) que possam ter, não adianta: eu vou direto olhar a biblioteca, não importa o tamanho, vou ver os livros – vale o mesmo para discos também, se por ventura a pessoa os colecionar; hoje eu vou focar nos livros (com grande probabilidade, outro dia ainda falarei dos discos...).
Vai muito além daquilo de “conhecer a pessoa pelos livros que ela lê/tem”, que eu acho bastante questionável; é um sentimento muito difícil de descrever. Eu sinto uma genuína emoção, é algo que me toca profundamente. E isso não é tão exacerbado nas bibliotecas grandes e cheias de variações (e, talvez, até umas raridades), que me fascinam e eu as invejo sim, mas, mais ainda, tenho grande admiração. Não, é com as pequenas que acontece meu sentimento inominável, aquela da pessoa que está começando sua coleção (seja de livros técnicos ou não), que tem uma meia dúzia de livros. Nossa, essas sim que me quebram! Essa é a emoção que eu sinto impossível de descrever. Acho que, no meu caso, isso é uma das coisas que pertencem aquele core, núcleo inviolável da pessoa que Winnicott fala. Mas me toca demais mesmo, de uma forma muito íntima, eu fico verdadeiramente comovido. Aqueles poucos livros... é algo muito especial! Eu não sei... eu fico imaginando (talvez o certo seria projetando) a emoção desta pessoa ao ter em mãos seus primeiros livros e os colocar lado a lado a fim de os organizar. E o imenso prazer que deve sentir ao contemplar a sua biblioteca. Isso é importante! E bonito... só quem é apaixonado por toda essa função entende (e, consequentemente, não consegue descrever seus sentimentos!). E, às vezes, nem a própria pessoa que está expondo seus livros é, de fato, apaixonada.
Isso não é (só) uma coisa de quem gosta de ler: é uma coisa de quem gosta de livros! Ainda que um possa ser consequência do outro, há uma grande diferença.
Existem pessoas que gostam muito de ler, mas não têm o mínimo apego material. Ou seja, preferem alugar o livro numa biblioteca do que comprar (estou falando, claro, de quem tem as condições para comprar livro), preferem o livro virtual porque não ocupa espaço (embora a biblioteca virtual esteja se tornando uma realidade), ou ainda, um sacrilégio para alguém como eu, as pessoas que se desfazem do livro depois de ler! É um pensamento lógico: o objetivo é ler, já li, não tem mais serventia; por que vou ficar com ele enchendo de pó e tirando lugar de algo útil que eu poderia ter na minha casa? Para essas pessoas, ficar horas em um sebo então (que é um dos maiores prazeres que existe!), às vezes sem nem saber o que se procura, mas só na expectativa de se surpreender pelo encontro ao acaso e se encantar por algo... nem pensar!
Por mais que esse tema seja muito presente para mim, fui impulsionado a escrever esta crônica por causa de uma conversa com uma pessoa muito especial para mim que compartilha comigo o sentimento de importância dos livros e assemelhados, e também do documentário “Umberto Eco – a biblioteca do mundo” (postagens o citando circulam no Instagram). É sobre a biblioteca da casa do escritor italiano, em Milão, de mais de 32 mil livros (!), mas é muito mais que isso. É sobre essa relação mais profunda que se tem com os livros. E coisas que eu ouvi desse documentário fizeram eco nesse meu sentimento que em vão eu tento falar.
De formar geral, Umberto Eco esclarece a importância de se ter o livro, independentemente da leitura ou não (eu falei sobre isso nessa crônica que indiquei, “A feira do livro”, citando uma fala de Jô Soares). Ele explica: é uma besteira pensar que se tem de ler todos os livros que se compra, é uma das coisas da vida que se deve ter em abundância (ele dá o exemplo de medicamentos: não se tem em casa somente aqueles que se precisa tomar, mas para, dependendo do instante, poder ter acesso ao que é perfeito – e necessário – para o momento). Ainda tem mais, que é um elemento de acaso: pode-se ir à biblioteca (a sua, ou de outros) com o intuito de procurar determinado livro, mas, pelo inesperado, encontra-se um livro cuja existência não se sabia, e que acaba sendo essencial.
É como um grande amigo me disse uma vez, quando eu relatei a felicidade que estava tendo lendo “Anna Kariênina”, de Tolstói: “não há nada como encontrar o livro certo na hora certa”. Nunca esqueci disso. Ora, para que isso seja possível de acontecer, temos de ter possibilidades. Possibilidade de encontrar algo novo ou ainda de reencontrar algo novo: aquele livro esquecido, pois já lido, pode vir a ser uma grande novidade, visto que não somos os mesmos quando da primeira leitura, e o próprio livro também não é!
Mais um pouquinho de Umberto Eco (ou da sua biblioteca): a nossa biblioteca, desse jeito que estamos abordando, não é um arquivo, não é um depósito de coisas que não têm mais uso: é um lugar vivo. Ainda mais, e isso é sensacional: ele diz que o conjunto da biblioteca, é o conjunto da memória da humanidade. Se pensarmos neste nosso recorte, na biblioteca pessoal, é o conjunto de memórias de uma vida, de uma existência ativa. Um livro, quando lido ou adquirido, marca um instante único (como as músicas também o fazem[2]). E essa memória não é (somente) nostálgica, não olha apenas para o passado: ela abarca todos os tempos do viver, projeta futuros e também presentifica aquilo que poderia ter sido. A biblioteca, por menor que seja, tem essa característica de labirinto temporal. Com essa significação, os livros têm papel primordial: sem memória, não se projeta nenhum futuro.
Então, nós estamos falando de uma dimensão afetiva, de uma relação amorosa que estabelecemos com os livros. Daí desse meu sentimento indescritível. Mas mais importante ainda é o cuidado, visto que tratamos da nossa memória e de nosso íntimo da forma mais profunda.
Já há algum tempo, eu tomei uma decisão extrema: não empresto livros. Independentemente da pessoa ou da circunstância, para ninguém! O problema é que eu não consigo seguir à risca a minha própria resolução: às vezes, não emprestar um livro soa, para mim, como negar um copo de água. Assim, fica uma lembrança, por vezes bem vívida, dos meus livros que foram e nunca mais voltaram, mas, por contraditório que possa parecer, não é disso que se trata. Até porque você poderia dizer: “mas então, cobre! Peça seus livros de volta!”. Não é isso. Há algo muito maior, muito mais vasto envolvido. Vou tentar explicar...
Eu nunca emprestei um livro que não tenha lido (por motivos óbvios, acho), então, eu já o aproveitei; em alguns casos, até decorei. Chamo novamente Umberto Eco quando ele questiona, como apontei anteriormente, das pessoas que compram um livro, leem, e se livram dele: tratam o livro como um bem, um produto de consumo. Se eu pensasse assim, é claro que eu iria atrás para recuperar meus bens! Mas, de novo, não é isso. Quando eu peguei, durante toda a minha vida, algum livro (ou disco, DVD, qualquer coisa) emprestado, sempre tratei com muito cuidado: era uma coisa valorosa. Mesmo que não fosse para que me emprestou: eu tenho essa concepção, logo, aplico para as coisas dos outros também (é por aí o meu sentimento das bibliotecas pequenas...). Assim, correr atrás de livros perdidos, seria como correr atrás de um pedaço da minha alma (ou coração, ou outro termo qualquer, dependendo da sua posição ideológica ou espiritual). Nossa, que coisa dramática, né! Mas é isso mesmo. A gente (nós, que temos essa relação com nossos livros e nossas bibliotecas) tem carinho e respeito por esses “objetos”, são muito mais do que muitas páginas com letras impressas: não só nos levam para outros mundos ou ampliam nossos horizontes teóricos: são partes constitutivas do que somos. É muito sério isso! Se fosse dinheiro, talvez seria mais provável que eu, delicadamente, cobrasse o que me devem; mas como eu iria reivindicar uma parte de um âmago que foi quebrada? Não há como buscar um investimento emocional desse tipo.
Esta foi uma crônica altamente apaixonada, de alguém imensamente fascinado pelo tópico, o qual, como acho que você pôde perceber, está muito além da materialidade do livro: estamos falando do seu (do nosso!) íntimo. Quando adquirimos um livro, estamos obtendo muito mais que isso. Mais uma vez, e essa referência nunca é demais, vou me reportar a Umberto Eco: quem ama os livros, sabe que um livro é tudo, menos uma mercadoria.
Março, 2025.